sexta-feira, 22 de outubro de 2010

VÍTOR GONÇALVES NETO (IV)

INSTANTE DE INOCÊNCIA E DE REVOLTA

Uma das coisas mais lindas e dolorosas que já li na minha vida e também das mais certas e mais chocantes foi que não há coisa mais triste do que uma criança triste. E isso me vem à lembrança agora nesta manhã de Novo Hamburgo no Rio Grande do Sul onde as crianças parecem um botão de rosa. Faces rosadas como que coloridas com papel de rósea cor. Tão bonitas que a gente sente vontade de beijá-las e nelas colher mais um pouco de vida. E de inocente amor.

Mas o que aconteceu foi ontem em Porto Alegre para onde fugi sem conhecer ninguém e vice-versa. Comecei a deflorar a cidade nua com os olhos úmidos de emoção. E fui esbarrar numa praça tão florida quanto as outras e cujo nome nem quis saber. Era uma praça e pronto. Um vento frio cortava o tempo da tarde e casais se aninhavam numa bolinação mútua e quente nos demais bancos. Foi justamente quando o vi. Um garoto todo enrolado em trapos de lã, de calças compridas e pés descalços. Nas mãos uma caixa de engraxate e um sorriso de dentes alvos saindo dos lábios vermelhos que entoavam uma canção. Vinha no meu rumo com sua carga de tintas e de alegria. E foi se abaixando nos meus pés já assoviando e abrindo uma lata de graxa marrom. Pois justamente neste mesmo instante um casal se senta ao lado com um garoto da mesma idade com trajes ricos e sapatos lustrosos como sua face também. E dirigiu um olhar e um sorriso talvez de mofa ou compreensão ao engraxatezinho que se levantou derrepentemente transtornado e num instante desapareceu entre as ávores agora carregando sua carga de inúteis tintas. E de imensa tristeza também.

Nesta manhã enevoada do dia seguinte a esse acontecimento já distante de Porto Alegre alguns quilômetros, fico olhando as fachadas alemãs das casas de Novo Hamburgo. Ali se aninham nada menos que 500 fábricas de calçados trabalhando diuturnamente. São milhares de sapatos (muito milhares mesmo) que ficam no Brasil e que são exportados para as estranjas. Só que não sobrou de todos eles nenhum par para o pequenino engraxate de Porto Alegre todo enrolado de trapos de lã. As calças compridas. Os pés no frio chão. Relembro de quando ele vinha saltitante no meu rumo cantando uma canção. De quando seu assovio se chocou com o sorriso de mofa ou de compreensão de outro menininho rico. De quando ele derrepentemente desapareceu entre as árvores da praça tão triste quanto um palhaço na hora da viuvez. Carregando sua caixa de tintas. Sua capa de inocência. Sua carga de revolta.
(23.11.1980)


Vítor Gonçalves Neto
In: Crônicas das Andanças: dos vivos e dos mortos, dos bichos e das fêmeas e de outras coisas que tais. Imperatriz: Ética, 1995.

Um comentário:

Carlos Leen Santiago disse...

Pow Luis muito legal da sua parte relembrar esse crônista maldito chamado Vitor Gonçalvez Neto.
Underground não, todo!