quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

O ÚLTIMO LEITOR

Vou percebendo, enquanto leio um livro usado, que o seu último leitor sublinhou algumas passagens e, mais curioso, sublinhou algumas palavras cujos significados, até então desconhecidos por ele, foram anotados logo acima delas, em letra pequena e à lápis.

Noutras vezes, em determinada página, estabeleceu uma linha que, saindo da palavra "exumada", percorreu o vazio entre um parágrafo e outro até alcançar a parte branca da folha, onde desembocou no seu sinônimo "desenterrar", também cuidadosamente escrito à mão e à lápis.

Surpreende o fato de serem palavras mais ou menos comuns, observadas e anotadas ao longo de todo o livro, o que demonstra, de certa forma, que aquele que as anotou, embora de parco dicionário, efetivamente terminou a leitura.

Não deixo de concluir – num misto de preconceito e admiração – que longe de ser um leitor experiente, é um desses leitores de rara paixão, segregado do sistema educacional e que, por isso mesmo, cunhou-se sozinho, amontoando, na solidão e precariedade do ato, o vocabulário que as circunstâncias sempre lhe negaram.

Não deixo de comparar esse último leitor – também com preconceito e admiração – ao Último Leitor do Ricardo Piglia, cujos ensaios registram, de um lado, um Jorge Luis Borges quase cego, de cócoras numa biblioteca e, de outro, um Che Guevara lendo em cima de uma árvore, na Bolívia, num intervalo de guerrilha.

Da comparação defendo que são todos amorosos com os livros, mas, enquanto aqueles me aparecem totalmente alfabetizados e até cultos, o ultimo leitor do livro que tenho em mãos me aparece saindo da zona nublada do analfabetismo e aprendendo o significado de novas palavras ao seu modo, a marretadas, no que denomino de autodidatismo marginal – o aprendizado papagaio, macaco, fruto da observação e da repetição.

A ele, um pouco do meu preconceito. E todo meu respeito e admiração.