sábado, 1 de dezembro de 2012

NA MA 122


Foi num estirão antes do Varjão dos Crentes. Eu voltava sozinho, às duas da manhã, da Regional. Quando a vi parada na curva, me assustei, e quase piso no freio na ânsia de acelerar mais. Olhei pelo retrovisor: véu, grinalda, um buquê nas mãos. E um vestido branco, muito branco.

Só reduzi a velocidade uns cinco quilômetros na frente. Ia então devagar, de terceira marcha, aliviado. Gelada, macia, a mão dela pousou sobre a minha. Estava sentada ao meu lado, fitando-me. Antes que eu me assustasse novamente, contou a história: indo para a cerimônia, o acidente fatal no Camaçari; o noivo esperando na igreja de João Lisboa.

Vagava, desde então, pela MA 122, sempre pedindo carona. Só não conseguia quando os motoristas, ao depararem com ela, perdiam o controle dos veiculos e se acidentavam fatalmente. No mais das vezes, sempre avançava na 'procura'. Uma noite, veio de Mucuiba para Ingarana na garupa de uma moto. O rapaz parecia comigo, disse. Fiquei calado. Ela me pediu um cigarro.

Antes do Tanque I solicitou parada. No meio de uma subida, ao lado de um jambeiro de chão encarnado pelas próprias flores. Esperei ‘a pergunta’ enquanto ela abria a porta e ajeitava o longo vestido para descer. Cheguei a pensar que não a ouviria, mas, quando já estava quase totalmente fora do veículo, olhou-me com os olhos grandes e com o rosto maquiado manchado de lágrimas:

‘Você não quer casar comigo?’

Respondi com um ‘não’ que aprendi na infância. Um ‘não’ meio ‘sim’, que traz consigo a entonação necessária para não contrariar demais. E sai de segunda marcha, a viatura ‘enguiando’, quase da mesma forma que havia acontecido meses antes, quando, após dizer o mesmo ‘não’, deixei-a no meio do breu da localidade Ingarana, debaixo de outro frondoso jambeiro.

 
(Da série: minha versão dos causos que ouvi na infância.)


sábado, 24 de novembro de 2012

ATAR OU DESATAR

Às vezes é como excluir um blog. Definitivamente. Ou não querer saber os segredos que a família guarda nas gavetas do guarda-roupa do parente que se foi. É mais uma questão de momento. Que os últimos créditos do celular fecundam os piores SMS. E o derradeiro gole da cerveja em lata, aquele gole morno, às vezes é preciso tomar sem fazer careta. Puxar o band-aid com força, com raiva, para que a ferida reste exposta diante dos olhos de todos. Latejando minúsculas nascentes de sangue. Às vezes é preciso descer um balde ao fundo do poço e puxá-lo torcendo para que suba só a corda. Para que a sede, finalmente, morra de sede. Verbalizar sem emoção alguma a palavra rude que traz consigo a contundência capaz de quebrar um nariz. Aquele ato meticulosamente pensado porque não pode ser repensado. Às vezes tão irrevogável quanto o pai de família que chega em casa e mete um cano na boca e aperta o gatilho.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

GUERRA AO ZUMBIRISMO


Impressionante como a série de TV ‘The Walking Dead’ deixa claro o apego do americano yankee por armas de fogo. É quase uma apologia. Por um motivo que não se explica (estou no início da segunda temporada) as forças de segurança (exército, marinha, FBI, etc.) não existem mais, ou pelo menos não são mostradas em ação, numa época em que o país está infestado por zumbis assassinos. É a desculpa ideal para próprio americano defender-se. A entrada triunfante da arma de fogo de uso civil. O marine recolhe seu M16 e sai de cena para o destemido texano com um 38 na cintura. ‘Às armas, cidadãos’, ainda que o convite seja desnecessário – o povo americano é o mais armado do mundo. Atualmente, até rifles róseos são vendidos para meninas, e na série, em determinado momento, é consenso entre os personagens que um garotinho deve aprender a manejar uma pistola.

Na segundo ou terceiro episódio da segunda temporada, é sintomático o treinamento de tiro que um dos protagonistas, o policial Shanne, ministra para uma sobrevivente numa floresta: enquanto um pequeno tronco de madeira balança pendurado numa corda fixada numa árvore, como se fosse um zumbi se movimentando de um lado para outro, ele a provoca com palavras típicas de um treinamento militar: se ela quer aprender a atirar – e a matar –, é preciso se desligar, esquecer a culpa, o medo, a irritação, tudo. Do contrário, como ele próprio vaticina, continuará atirando ‘como uma garota’.

A apologia funciona muito bem porque os inimigos são mortos-vivos impiedosos. É politicamente correto atirar num zumbi, ‘matar um morto’. Mas em sonhos, o telespectador branquelo – principalmente o que traz uma SS tatuada no braço –, se cercado por dois ‘walkers’, certamente não hesitaria em descarregar a sua Colt .40 no crioulão que traja uma camisa fedida e rasgada do Troy Davis. E é claro que a eleitora do Obama, no caso de um apocalipse zumbi, desejaria que a sua vizinha republicana fosse infectada o quanto antes. Porque, excitada, ela já treina disparos imaginários no quintal de casa. Utilizando uma espingarda calibre 12 e tendo como alvo um cartaz do Mitt Romney.


(P.S.: Curiosamente, o protagonista da série é um xerife que andou à beira da morte após ser baleado logo no primeiro episódio.)

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

SOBRE UM PERFIL SEM FOTO DE QUANDO CRIANÇA

(Texto inspirado na 'onda' dos usuários do Facebook postarem fotos de quando eram crianças nos seus perfis)


Eu poderia colocar a foto em que apareço nos braços do meu pai, em Niterói, aos dois anos de idade. O meu pai está encostado numa parede, em pé, pernas cruzadas, me segurando apenas com um braço, o direito, porque com o esquerdo – precisamente com a mão do braço esquerdo – segura um cigarro Plaza fumado pela metade. E ainda que pese eu estar sendo pressionado contra o peito de um flamenguista, já ostento um grande sorriso vascaíno.

Eu poderia colocar a foto em que apareço só de cueca, no Facão, município de Brejo, Maranhão. Estou em pé, segurando um carro feito de buriti com a mão direita e utilizando o antebraço esquerdo para proteger os olhos da incidência dos raios solares. Em segundo plano, há uma casa de pau-a-pique, coberta de palha, na frente da qual aparecem, ao lado da porta, uma velha cachorra e uma cadeira de macarrão. Loiro de tanto sol, eu devo estar com quatro anos nesta foto.

Eu poderia colocar a foto em apareço na frente da Armarinhos Imperial, na Avenita Getúlio Vargas, ao lado da antiga Roto Discos. Eu estou sentado no batente da loja, visto um short branco, uma camisa de botão vermelha e calço sandálias de couro que se prendem os meus pés por fivelas. Então com seis anos, eu examino, curioso, o presente que o meu tio me deu: um pequeno caminhão boiadeiro carregado de vaquinhas azuis, brancas e amarelas. Dono da loja, o meu tio aparece logo atrás, encostado num mostruário de vidro, sorridente, cantando uma funcionária.

Eu poderia colocar a foto em que estou sentado na calçada da residência da minha finada avó, na rua B do bairro Nova Vitória. Estou na casa dos sete anos e tenho muitos amigos. Deve ser de manhã, deve ser após uma brincadeira. Olhando com mais atenção, percebe-se que eu e os outros estamos ofegantes de tanto correr. Estamos todos sem camisa, e o suor desce livre pelas nossas caras. Não há fadiga. O cansaço é de alegria. E breve a minha avó irá nos gritar e sairemos novamente correndo em debandada, mas agora para comer bolacha cream cracker com suco de uva.

Eu poderia colocar diversas outras fotos – a que estou dando uma mamadeira para uma onça na Expoimp; a que apareço jogando vídeo-game na casa de um vizinho; a do dia do meu aniversário de dez anos, no bar que tínhamos ao lado do Parque de Exposições, etc. –, mas os álbuns que continham tais fotos foram – junto com uma bicicleta, uma TV, um ferro de engomar, um forno elétrico – todos furtados, certa noite, quando dormíamos, por uns ladrões de olhos tristes e mãos frias.