quinta-feira, 29 de abril de 2010

DEPOIS DAQUELE FILME

pensando em estimadas pessoas que de repente sumiram da minha vida

“Alta noite jazia”, Arnaldo, e enquanto os justos dormiam, nós, guiados por Ginsberg, só pensávamos em percorrer a “madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa”. Indiferentes como Fernando –“tantas vezes reles”- e salientes como Piva –“os malandros jogam ioiô na porta Abismo”-, éramos Raskolnikovs sem culpa sussurrando Gullar na orelha da sociedade –“teu nome está inscrito na parte mais úmida dos meus testículos suados”-, urinando sobre os manjares dos deuses, quebrando pactos, desafiando vida e morte –“tanta violência”, Faustino, “mas tanta ternura!”- e ilesos no dia seguinte –“mostrando os dentes, rindo ao sol com insolência” (e haveria outro modo, Vladimir?)-, loucos videntes da felicidade, desconhecíamos que em poucos anos, como membros amputados, irreconhecíveis burocratas, saudosos covardes –“matamos o tempo”, Machado, “o tempo nos enterra”-, diante de um Drummond –“porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”-, folhearíamos velhas fotografias num álbum da Tietri Color e depois dormiríamos o sono dos justos sobre nossos colchões ortopédicos.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

ROBERTO BOLAÑO

Lupe


Trabalhava na avenida Guerrero, a poucas quadras da casa de Julián/ E tinha 17 anos e havia perdido um filho./ A lembrança a fazia chorar naquele quarto do hotel Trevo,/ espaçoso e escuro, com chuveiro e bidê, o lugar ideal/ para se viver por alguns anos. O lugar ideal para escrever/ um livro de memórias apócrifas ou um ramalhete/ de poemas de terror. Lupe/ era magra e tinha as pernas compridas e manchadas/ como as dos leopardos./ A primeira vez nem sequer tive uma ereção:/ tampouco esperava ter uma ereção. Lupe falou de sua vida / e do que era a felicidade para ela./ Depois de uma semana voltamos a nos ver. Encontrei-a/ numa esquina junto com outras prostitutas adolescentes,/ apoiada no para-lamas de um velho Cadillac./ Acho que ficamos felizes de nos ver. A partir de então/ Lupe começou a me contar coisas de sua vida, às vezes chorando,/ às vezes trepando, quase sempre pelados na cama,/ olhando o céu raso de mãos dadas./ Seu filho nasceu doente e Lupe prometeu à Virgem/ que largaria sua profissão se seu bebê sarasse./ Manteve a promessa por um mês ou dois e logo teve que voltar./ Pouco depois, seu filho morreu e Lupe dizia que a culpa/ era dela por não cumprir o prometido à Virgem./ A virgem levou seu anjinho por sua promessa não cumprida./ Não sabia o que lhe dizer./ Eu gostava de crianças, claro,/ mas ainda faltavam muitos anos para que soubesse/ o que era ter um filho./ Por isso ficava quieto e pensava em como era estranho/ o silêncio daquele hotel./ Ou tinha as paredes muito grossas ou éramos os únicos ocupantes/ ou os demais não abriam a boca nem para gemer./ Era tão fácil lidar com a Lupe e sentir-se homem,/ e sentir-se um infeliz. Era fácil acompanhar seu/ ritmo e era fácil ouví-la se referir/ aos últimos filmes de terror que havia visto/ no cine Bucareli./ Suas pernas de leopardo enlaçavam meus quadris/ E afundava sua cabeça no meu peito procurando os meus mamilos/ ou o latido do meu corãção./ É isso o que eu quero chupar, me disse uma noite./ O que, Lupe? Seu coração.

Tradução: Rodrigo Garcial Lopes.

In: Revista Coyote n. 17. Outono de 2007. Londrina (PR).

sábado, 10 de abril de 2010

O VAZIO

Não lembrarei a data certa - se véspera ou noite de Natal -, nem o teor exato da conversação. Eu estava escovando os dentes quando o telefone tocou em cima da fruteira abandonada no quarto também abandonado - o primeiro compartimento da casa, na verdade um espaço amplo que fora originalmente projetado para ser usado como comércio, Mini Box, essas coisas. Ainda com a escova de dentes na mão e sentindo o gosto menta do Kolynos na boca, eu puxei o fone e sentei ao lado da fruteira, no piso vermelho um pouco empoeirado.

“Alô”.

Do outro lado da linha ninguém respondeu, a não ser o barulho de um cachorro latindo e de uma televisão ligada no Globo Repórter, exatamente o programa que meu irmão assistia na sala, não tão perto para poder ouvir-me ao telefone, nem tão longe que eu não pudesse escutar o Sérgio Chapelin anunciando o conteúdo do programa daquela sexta, algo do tipo Os Mistérios da Vida Submarina no Arquipélago de Fernando de Noronha.

“Alô”, eu disse novamente, enquanto o Chapelin chamava os comerciais, e já ia bater o fone, mas eis que, antes de tocar a musiquinha tema do Globo Repórter, uma língua meio embolada respondeu:

“Oi, alô, tudo bem?”

Uma voz feminina, madura, um pouco descoordenada. E antes que eu respondesse:

“Com quem eu falo?”

“Eu é que pergunto com quem eu falo”, respondi.

A voz disse que chamava-se Magnólia e estava tentando ligar para a casa de uma amiga. Teresa era o nome da tal amiga. Depois completou:

“Acho que tá dando linha cruzada. Mas... como é seu nome mesmo?”

“Ricardo”.

Não, eu não ia dizer meu nome verdadeiro. Podia muito bem ser um trote. Uma amiga de colégio se passando por uma mulher bêbada para me pregar uma peça.

“Então, Ricardo. Não é aí que mora a minha amiga Teresa não, não é? Ou será que é?”

“Não, não é não”.

Me pediu desculpas. Não queria incomodar. Mas é que a Teresa tinha dado aquele número para ela.

“Deve ter dado errado então.”

“Pois é”.

“Então tudo bem, dona Magnólia, vou desliga o telefone.”

“Não, espera aí.”

Ouvi um barulho parecido com um dedo bolinando em cubos de gelo dentro de um copo de wisk.

“Cê tá bebendo?”, perguntei?

“Tô, bebê” - ela disse, enquanto eu imaginava ter ouvido um estalo de língua entre lábios -, “tô bebendo Passport com gelo de água de coco. Quer um pouquinho?”

“Não, minha senhora... Vou desligar.”

“Espera, rapaz, vamos conversar um pouco. Tô sozinha e triste aqui do outro lado da linha. Meus filhos estão viajando pra Salinas e eu fiquei em casa só com o cachorro e o papagaio...”

Depois de uma pausa, ou de um gole de Passport, ela disse que o marido também não estava em casa. Tinha ido pescar tambaqui no açude da Chácara Menina Mar Linda com um grupo de amigos. Segundo a mulher, havia cinco natais que era sempre assim: os filhos viajando, o marido pescando e ela sozinha em casa, bebendo e fumando sob o ar condicionado do quarto do casal. Por isso ligou pro primeiro número que lhe veio à mente. Queria falar com alguém, passar o tempo, espairecer. E principalmente preencher um tal de vazio.

“Que vazio é esse?”, perguntei.

“O vazio existencial, menino da voz bonita. O vazio que maltrata a gente, que impede a gente de viver bem. Mas você não deve saber o que é isso. Você parece jovem. Aliás, quantos anos você tem?”

Eu não menti: quatorze. Ela tossiu do outro lado e disse que era uma idade linda. Uma idade que não tinha vazio nenhum pra preencher.

“Você está na flor da idade, mocinho. Aposto que é um rapaz bonito. Você tá sozinho em casa?”

“Não, tô com meu irmão, mas minha mãe e meu pai tão viajando.”

Escutei um som abafado de campainha. Ela pediu um tempo, uns dois minutos. Depois voltou mastigando. Era uma pizza que havia encomendado. Perguntou se eu aceitava e eu disse que não. Então pôs-se a falar novamente sobre o tal vazio existencial. Os ciúmes do marido, os filhos problemáticos, a mesmice da vida de dona-de-casa, o desejo de largar tudo - família, emprego -, estalar os dedos e desaparecer. Por fim, perguntou se eu não estava disposto a preencher o tal vazio.

“Talvez”, eu disse, e perguntei de que modo poderia fazê-lo.

“É muito fácil. Você vem aqui em casa pra beber comigo. A gente conversa. Você me abraça bem forte, porém devagar. Isso fará com que eu fique bem molenga e me abra totalmente pra você preencher o meu vazio”.

“Mas o que eu boto dentro desse vazio?”

“Tua força, tua energia, tua raiva, bota tudo que você tiver, coração.”

“Tá bom então.”

“Você vem?”

 “Onde cê mora?”

“Na 15 de Novembro, perto da Assembléia de Deus”.

“Tô indo, viu. Me espera aí”.

Bati o telefone. Minha cabeça estava um pouco tonta. Fui até a sala e sentei no sofá olhando pra televisão. Meu irmão não estava mais: tinha saído pra escovar os dentes. Fiquei olhando as letrinhas subindo no encerramento do Globo Repórter. Tive a impressão de que elas saiam da tela e continuavam subindo até o telhado. Do telhado batiam na estante. Da estante batiam no sofá e depois em outros móveis. Algumas resvalavam na minha cabeça e seguiam procurando outras tabelas. Em pouco tempo a sala estava repleta de créditos finais do Globo Repórter. Foi quando o telefone tocou e o meu irmão, voltando da pia com a escova de dentes pendurada na boca, atendeu.

“Alô”, ele disse, ao tempo em que na TV a Lílian Witti Fibe chamava as notícias do Jornal da Globo. “Alô”, disse novamente, e eu, já meio zumbi, sentia agoniado uma sensação de vazio crescendo dentro de mim.