quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

HAI DE TI TV


Tem gente que adora. Gente como o meu tio, que se regozija diante do Jornal Nacional. "Quantos? Cem mil? Aposto que esse número vai aumentar. Tem muito mais morto debaixo desses prédio aí"

Corta.

Observo com nojo a repórter da Globo forçando uma entrevista exclusiva com uma mulher soterrada. Pedindo pra ela dar um tchalzinho lá de dentro dos escombros. E se a câmera pifasse antes da captação das imagens? A repórter pediria para os bombeiros retardarem o resgate? Apertaria o pause para o cinegrafista concertar o aparelho e não perder o furo de reportagem?

Corta.

Outra repórter, essa da Record, embarca num helicóptero militar carregado de mantimentos. A aeronave não pousa, apenas plana sobre um grupo de desabrigados. Quando as caixas são jogadas pelos soldados no meio da multidão, a repórter entra em êxtase, muda de voz, e segurando o microfone com a mesma ânsia que segura um pau antes de chupá-lo, diz, em outras palavras, o que desejaria dizer com estas: "Vejam, telespectadores, quantos famélicos se digladiando por uma barrinha de cereal e uma garrafinha d'água.

Corta.

Liberdade de imprensa? Passo, repasso, não pago. E vivo muito bem sem tais jornais.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

MOACYR SCLIAR

MILTON E O CONCORRENTE

Milton ainda não abriu a sua loja, mas o concorrente já abriu a dele; e já está anunciando, já está vendendo, já está liquidando a preços abaixo do custo. Milton ainda está na cama, ao lado da amante, dessa mulher ilegítima, que nem bonita é, nem simpática; o concorrente já está de pé, alerta, atrás do balcão. A esposa - fiel companheira de tantos anos - está a seu lado, alerta também. Milton ainda não fez o desjejun (desjejun? Um cigarro, um copo de vinho, isso é desjejun?) - o concorrente já tomou suco de laranja, já comeu ovo, torrada, queijo, já sorveu uma grande xícara de café com leite. Já está nutrido.

Milton ainda está nu, o concorrente já se apresenta elegantemente vestido. Miltom mal abriu os olhos, o concorrente já leu os jornais da manhã, já está a par das cotações da bolsa e das tendências do mercado. Milton ainda não disse uma palavra, o concorrente já falou com clientes, com figurões da política, com o fiscal amigo, com os fornecedores. Milton ainda está no subúrdio; o concorrente, vencendo todos os problemas do trânsito, já chegou ao centro da cidade, já está solidamente instalado no seu prédio próprio. Milton ainda não sabe se o dia é chuvoso, ou de sol, o concorrente já está seguramente informado de que vão subir os preços dos artigos de couro. Milton ainda não viu os filhos (sem falar da esposa, de quem está separado); o concorrente já criou as filhas, já as formou em direito e química, já as casou, já tem netos.

Milton ainda não começou a viver.
O concorrente já está sentindo uma dor no peito, já está caindo sobre o balcão, já está estortorando, os olhos arregalados - já está morrendo, enfim.

In: Contos reunidos. São Paulo: Cia das Letras, 2008.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

FRUTARIA S/A

Cubinhos de manga mais verde que de vez com açúcar dentro do armário da cozinha esperando a hora agá chegar.

A boca progressivamente cheia d'água antes do jambo retornar dos dentes mordido.

Piscina é escavar o vermelho da melancia até chegar no branco alagado da casca.

A laranja geladinha da banca do homem da Getúlio Vargas partida ao meio por uma faquinha de serra samurai cai muito bem com limão e sal.

Jaca: nada mais excitante do que destrinchá-la e comê-la. Jaca: necessário um pouco de gasolina para deslambuzar-se depois.

Cajá só presta se deixar os dentes dormentes.

A culpa não é nossa nem da lagarta se a comemos sem saber dentro da dulcíssima goiaba.

É verdade que se preservadas as sementes no suco de maracujá brotarão maracujazeiros no estômago da infância?

As avós dizem que sim.

E tem criança que abocanha a parte podre da banana.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

NO BAR DO GIL COM AVATAR, MANDI, ATIVIDADE PARANORMAL, PESCADA, MORTE, TERROR ORIENTAL, MEDO E "NÃO JUSTIFICA, GERRÊRO"

Quem diria que numa noite um pouco chuvosa de segunda-feira eu encontraria o Davison e o Santos, velhos companheiros de um já distante movimento estudantil uemiano? Mas lá estavam eles, abancados no Bar do Gil, bebedendo a boa e velha cervejinha do recinto na companhia de outras figuras não menos ilustres egressas da Uema. Não podeira me furtar àquela celebração um tanto convidativa e desapeei para rever os amigos.

Conversa vai, conversa vem, acabamos por enveredar pelo cinema. O tal do Avatar. O Davison havia assisto ao filme em São Luis e disse que ficou embasbacado com o roteiro, a fotografia, os óculos 3D (que ele de vez em quando tirava e botava, incrédulo), enfim com a aula de direção do James Cameron. Outra fita que emergiu na mesa foi Atividade Paranormal. Dizem que é o novo A Bruxa de Blair. Muita gente não gostou, fuzilou o fime: plágio, oportunismo, superficialidade. Não sei. Estou na fissura para assisti-lo, pricipalmente depois de ter lido um texto do Jorge Coli - colunista do Caderno Mais da Folha de São Paulo - sobre a película. E já que o tema era filme que bota medo, pulamos logo pro terror oriental. Um terror que não nos assusta ao estilo hollywoodiano - o Jason nos perseguindo segurando uma cabeça decapitada numa mão e um facão na outra, ou trucidando um casal em pleno coito para satisfazer a moralidade do puritanismo americano -, mas um terror que explora o medo do desconhecido. O Chamado, por exemplo, na sua versão japonesa, original. Quando assisti ao filme, numa noite de domingo, tive, como Kafka, sonhos intranquilos: ao domir, sonhei que a silhueta da menina do filme aparecia na janeja do meu quarto. Acordei assustado, e mais assustado fiquei ao olhar para a janela e perceber - ou imaginar - um vulto como que a sumir atrás das vidraças. Peguei pregos, martelo, uma velha rede no guarda-roupa e dei um jeito de tampar a janela. Nos finalmentes, o Davison confessou que tem medo de meninas cabeludas que ficam em cima de uma mesa balaçando os pezinhos e pedindo alguma coisa com a mãozinha estendida. Isso é realmente assustador, mas eu e o Santos concluimos que temos medo do escuro, do breu absoluto.

Para mudar de assunto, revisitamos a velha e idiota rivalidade entre Imperatriz e São Luís. Essa dicotomia forçada que gera desde brigas de internautas em comunidades do Orkut até comparações das mais absurdas, como a que afirma que as mulheres de cá são infinitas vezes mais bonitas que as de lá. Sem falar que o termo "interior" sempre é tomado na acepção de "matuto", e nunca com o significado do que está dentro, e não na beirada, no litoral. Em dado momento, ouço do Santos ou do Davison a história de um jornalista da cidade que, em viagem à ilha, na praia, se recusou peremptoriamente a comer uma pescada. Diversas vezes convidado, deu pra trás afirmando que o mandi do Tocantins é muito melhor do qualquer pescada de São Luis. Eu mesmo tenho de medo de radicais.

Outro tema que nos tomou uns goles de cerveja foi a morte. Não a morte dos compêndios filosóficos, dissecada por intelectuais, mas a morte nossa de cada dia, como a recente morte do Junior da River, um cara que até pouco tempo esteve conosco no Gil dividindo uma mesma mesa de bar. É muito estranho saber que nunca mais o veremos sentado próximo ao balcão na companhia do Márcio Papel, bebendo cerveja, gargalhando e vez em quando mordiscando um queijo com salame, orégano e azeite de oliva. Mas assim é, e no momento em que estamos mais esquecidos dela, a Miss Death nos dá um tapa na cara – geralmente materializado na partida de um amigo - como a nos lembrar que um dia, um dia - bom, o melhor é mudar de assunto.

*

Disse para mim mesmo que não ia mais postar nada sobre o Amarante neste Hotel Subterrâneo. Primeiro porque uma pessoa insuspeita se travestiu de anônimo para escrever um comentário me chamando de fofoqueiro, de Tia de Calçada (mas eu sei quem foi: o meu blog tem bina), e segundo, porque não quero (não por medo, mas por falta de saco) responder a processo administrativo e/ou ser processado por alguém. Mas o caso em tela é muito pitoresco para não ser compartilhado aqui. Muito amarantino. Ei-lo: certo dia, a viatura da polícia quebrou e foi mandada para a oficina mecânica. O mecânico trabalhou obstindadmente, dia após dia, rebimboca da parafuseta após rebimboca da parafuseta, até concertá-la. Depois encheu-se até as orelhas de cachaça e foi acometido da excitante ideia de fazer umas blitzizinhas pela cidade. E se mandou para uma esquina, ele e mais dois índios também devidades bêbados, e começou a parar carros, motos, bicicletas. Vai que, certa hora, ele parou um policial mitilar que estava de folga, transitando numa motocicleta. O militar a princípio estranhou aquele novo tira, mas o mecânico impôs a sua autoridade policial de forma incisiva:

-Documento da moto e habilitação, por favor.

E depois de olhar os documentos:

-Tá vindo de donde?

-Tô vindo da casa de minha namorada. Sou policial aqui da cidade - o PM respondeu.

-Ah, é?

-É. Sou.

-E cadê a tua farda?

-Tá em casa, hoje eu tô de folga.

E o mecânico, com uma mão na cintura, a outra na viatura, pernas cruzadas, utilizando um timbre de voz de displicente superioridade hierárquica:

-Não justifica, guerrêro.

Foi quando o PM sentiu um potente bafo de cachaça na cara e percebeu os dois índios dentro da viatura. Aí deu voz de prisão pro homem, para ele largar de ser "doido" e voltar a ser mecânico.