sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

VITOR GONÇALVES NETO (III) E LOBO PARAMILITAR

OU PAPAI NOEL BOQUETEIRO E PAPAI NOEL MORTO

No Natal, ah, no Natal, a neve cai em Imperatriz...

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O boqueteiro. As aventuras de Vitor Gonçalves Neto com um Papai Noel diambeiro e especialista em "bola-gato":


"DEPOIS DA MISSA DO GALO…

Pombas! Não é que eu seja de missa não. Nem era. Mas naquela noite infecta de 24 de dezembro (já não me lembro o ano), perdido completamente num bairro de uma cidade estranha, me foi o jeito esperar. Ou esperá-la. Em frente ao templo alguns casais se bolinavam pelo que escolhi um lugar aos fundos para dormir. Calculei mais ou menos que naquele local estaria livre da polícia e de outras coisas que tais. Minha barriga roncava reclamando algum alimento. Garganta seca. Sexo inquieto. As roupas e o corpo fedendo a cachaça e a peido e a suor. Barba crescida. Bolsos completamente vazios. E mais que tudo a indiferença da cidade desconhecida e de seus malditos habitantes. Muito pior que a fome e o frio.

Dormi com a cadência dos sinos na sua primeira chamada aos fieis, logo mais sendo despertado por um foguetório filho da puta. E justo no momento em que alguém me alisava a perna esquerda, doendo a cãibra e reumatismo, e me baforava diamba pelas fuças. De olhos meio fechados (como num sonho) divisei um vulto fresco sentado ao lado. Ouvi uma voz de falsete dizendo assim:

“Não se assuste, filho. Eu sou Papai Noel… e você não precisa me dizer quem é!” E lembro que puxei ainda umas tragadas de seu cigarro de maconha. Empurrei sua mão espúria de entre minhas coxas. E mandei-o à merda simplesmente. Mas ele não foi. Ficou ali.

Quando acordei de fato, se houvera missa então já com galo e tudo se acabara. Um guarda noturno apitava pelaí e a visão daquele Papai Noel esdrúxulo aos poucos se apagara em mim. Mas confesso até que me ri muito ao deparar com aquelas barbas brancas postiças sobrando em minha braguilha… e avidamente recolhi o conteúdo do saco que milagrosamente me aparecera ali: uma garrafa de vinho tinto… cigarros e sanduíches… e ainda algum dinheiro também. Foi sem dúvidas o mais arretado Natal de minha vida. E amém!

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O palavratório acima data de 1973 e foi escrito especialmente para figurar em “Uma coletânea brasileira de Natal” do nosso poeta e folclorista Nascimento de Moraes Filho, que a batizou como o nome de “Esperando a Missa do Galo”, cuja foi distribuída em primeira mão a uns cem bispos que se reuniam na capital maranhense sob os auspícios do então prefeito Haroldo Tavares. O que me valeu uma excomunhão coletiva e a alcunha de O Cronista Maldito, que meu amigo poeta José Chagas me botou…"

Vitor Gonçalves Neto
In: Crônicas das Andanças: dos vivos e dos mortos, dos bichos e das fêmeas e de outras coisas que tais. Imperatriz: Ética, 1995.


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O defunto. Curta-metragem não-oficial baseado na HQ Lobo. Na historinha, o Lobo Paramilitar - o maiorial, o mercenário das galáxias - é contratado pelo Coelhinho da Páscoa para assassinar o Papai Noel. Motivo: o Natal estava "falindo" o demais feriados (inclusive a Páscoa) e, pior, o Papai Noel andava se gabando muito disso. Curta dos estudantes do American Film Institute, de baixíssimo orçamento (os atores, por exemplo, dispensaram cachê) e filmado sem a autorização da DC Comics:


LOBO PARAMILITAR ESPECIAL DE NATAL







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E como hoje celebramos o nascimento do "Menino", um salve para o "Menino Geraldo", que aniversaria hoje.

No foto com Cabecinha, no carnaval passado.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O MENDIGO DA VIOLA DE PLÁSTICO


Às vezes eu o via no Calçadão, próximo ao Armazém Paraíba, tocando um quebradiço violão, enquanto o seu parceiro de vadiagem e mendicância (este, aleijado, paralisia infantil) arrastava seus membros inferiores pequeninos e sujos para poder recolher as moedas jogadas no chão. Outras vezes, geralmente à noite, enquanto aguardava o buzu do Conjunto Vitória passar, eu o via na parada de ônibus da praça Tiradentes, nos arredores das barraquinhas de comida, viola em punho, tocando - incomodando - os poucos clientes das barraqueiras, na esperança quase inútil de obter alguma migalha para forrar o bucho.

O tempo passou, o tempo voou, a poupança Bamerindus foi pros cocos, até que, dia desses, vi a foto acima no blog do fotógrafo Pinheiro. Não havia muita informação. O óbvio apenas: acidente de trânsito. Fiquei olhando os detalhes da imagem. Pequenos detalhes, suposições.

O carro verde, um Uno parado no trânsito - ou em trânsito no trânsito?; dois homens operando celulares: um de camisa laranja manga comprida, quase no centro da foto, e o outro, um motoqueiro, capacete firmado na testa, no canto esquerdo - estariam eles ligando para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o popular Samu?; Três crianças olhando a cena - não diretamente para o homem caído, nem para o homem em pé, cabeça baixa, segurando o cotovelo esquerdo com a mão direita, mas para outro ponto, um ponto não identificável na foto, um ponto aparentemente tão longe - por não ter sido capturado pelo clic - e ao mesmo tempo tão perto - por estar ali, nas imediações, talvez só a alguns centímetros além do enquadramento do fotógrafo; uma quarta criança - um menino, um bicicleteiro - olhando frontalmente para a lente da máquina; cinco adultos (ou quatro deles mais a metade de um), que podem muito bem se conhecer (ou se desconhecer), no canto direito, à esquerda do homem de camisa laranja, sendo que um deles, o barrigudo, fuma um cigarro que pode ser Carlton, ou Derby, ou Free, ou Plaza, ou mesmo um cigarro de maconha feito em palha de milho e embebido em mel; um casal numa moto, em terceiro plano, atrás do Uno verde, olhando para o lado oposto da cena, possivelmente perguntando para a mulher morena, também atrás do Uno: “-Foi acidente?”; outros dois bicicleteiros, ambos de boné, um no meio e outro no canto esquerdo, em aparente comunicação visual; silhuetas de outras pessoas no lado direito, detrás dos quatro homens mais a metade de um; a clara curiosidade da mulher do Uno verde, esticando o pescoço e procurando melhor ângulo de visão, algo quase mórbido, extremamente reprovável em mulheres como ela, supostamente uma serva de Deus, uma assembleiana, uma mulher fiel e obediente ao marido; a rabeta de uma motocicleta, azul, no lado inferior esquerdo, possivelmente a motocicleta que se envolveu - é o que informa o blog do repórter fotográfico - no acidente automobilístico; um violão quebrado em três partes, supostamente do homem caído e próximo ao corpo dele, que pode ter parado ali pela força do impacto da colisão, ou pode também ter sido posto ali por um contra-regras que estava vindo do teatro com o instrumento cenográfico e decidiu colocá-lo naquela posição para dar mais veracidade aos fatos, para chamar a atenção das autoridades responsáveis pela segurança no trânsito; o homem em pé, magro porém forte (típico aspecto de estivador), mão direita segurando o cotovelo esquerdo, calça rasgada, um pouco curvado, talvez sentindo dor, talvez se preparando para desferir um chute certeiro na cara do imprudente transeunte que atravessou o seu caminho, mas certamente o piloto da motocicleta azul envolvida no acidente; enfim o próprio homem caído, braços para trás, pernas em “V” (o formato preciso de um passo), cabelos grisalhos, roupa gasta, suja - o acidentado, o mendigo, o que eu não via há muito tempo, o atropelado, o que não é recenseado pelo IBGE, o mesmo de oito ou noves anos atrás, nos arredores do Armazém Paraíba, e o mesmo de ontem, 22 de dezembro de 2009, dez da noite, flagrado por mim e pelos farois de diversos veículos nos arredores da rodoviária, numa rua pouco iluminada, calças arriadas, sentado estrategicamente numa calçada (na verdade, utilizando a sua altura como providencial sanitário) e cagando, principalmente cagando, com aquela cara de alívio que um bom cagão sempre nos dá, ele e sua viola - agora, depois do acidente - de plástico.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A PONTE

Em tempos de propaladas pontes, uma ponte kafkiana.

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"Eu estava rígido e frio, era uma ponte, estendido sobre um abismo. As pontas dos pés cravadas deste lado, do outro as mãos, eu me prendia firme com os dentes na argila quebradiça. As abas do meu casaco flutuavam pelos meus lados. Na profundeza fazia ruído o gelado riacho de trutas. Nenhum turista se perdia naquela altura intransitável, a ponte ainda não estava assinalada nos mapas. - Assim eu estava estendido e esperava; tinha de esperar. Uma vez erguida, nenhuma ponte pode deixar de ser ponte sem desabar.

Certa vez, era pelo anoitecer - o primeiro, o milésimo, não sei - meus pensamentos se moviam sempre em confusão e sempre em círculo. Pelo anoitecer no verão, o riacho sussurrava mais escuro - foi então que ouvi o passo de um homem! Vinha em direção a mim, a mim. - Estenda-se, ponte, fique em posição, viga sem corrimão, segure aquele que lhe foi confiado. Compense, sem deixar vestígio, a insegurança do seu passo, mas, se ele oscilar, faça-se conhecer e como um deus da montanha atire-o à terra firme.

Ele veio; com a ponta de ferro da bengala deu umas batidas em mim, depois levantou com ela as abas do meu casaco e as pôs em ordem em cima de mim. Passou a ponta por meu cabelo cerrado e provavelmente olhando com ferocidade em torno deixou-a ficar ali longo tempo. Mas depois - eu estava justamente seguindo-o em sonho por montanha e vale - ele saltou com os dois pés sobre o meio do meu corpo. Estremeci numa dor atroz, sem compreender nada. Quem era? Uma criança? Um sonho? Um salteador de estrada? Um suicida? Um tentador? Um destruidor? E virei-me para vê-lo. - Uma ponte que dá voltas! Eu ainda não tinha me virado e já estava caindo, desabei, já estava rasgado e trespassado pelos cascalhos afiados, que sempre me haviam fitado tão pacificamente da água enfurecida. "

Franz Kafka
In:Narrativas do espólio. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
Tradução de Modesto Carone.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

ATIRARAM NO DRAMATURGO
























Estava eu palitando os dentes encostado no balcão do permanência, olhando displicentemente a TV, quando o Wilhiam Bonner apareceu no vídeo me encarando: "É grave o estado de saúde do dramaturgo Mário bortolotto. Ele foi baleado na madrugada de sábado ao reagir a um assalto no bar do Espaço Parlapatões, na praça Roseevelt, centro de São Paulo." Cheguei mais perto da TV. Aumentei o volume. "Que foi?", perguntou o Nêgo, do outro lado do balcão, segurando um bandeco do Restaurante da Rosa e levando uma colher cheia de macarrão e arroz e frango frito pra boca. "Eu conheço esse cara aí, bicho!" E depois que o Bonner parou de falar: "Rapaz, eu acesso o blog dele quase todos os dias quando eu tô lá em Imperatriz." "E o que diacho é blog?", quis saber o Nêgo, sugando um relutante fio de macarrão que insistia em fugir de seus beiços.

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Na verdade eu não "conheço" o Mário. Ou melhor: não pessoalmente. Mas como já vai pra mais de ano que acesso regularmente o blog do cara, acho que posso dizer - sim - que o "conheço". Invariavelmente, todos os dias folheava o seu blog. Por lá tomei conhecimento de muita coisa boa: cinema, literatura, blues, rock, quadrinhos. Por lá também passei a acompanhar o cotidiano do cara. Os amigos de bar, de teatro, a ressaca, a solidão, posts de amor desesperado, comentários ofensivos de anônimos: tudo ali no atirenodramaturgo.zip.net. Aliás, depois da tragédia - três tiros: no coração, no tórax e no pescoço -, o nome do blog repercutiu de forma negativa na imprensa almofadinha. Muita gente se apressou em associar os tiros levados pelo dramaturgo ao nome do blog e à suposta “violência de sua obra” - contos, poesia, dezenas de peças de teatro. Em vão, pois diversos artirtas que conhecem a obra do Mário Bortolotto trataram logo de esclarecer os fatos e dar descarga em parte da cagada que muitos jornais publicaram. É o caso do texto publicado por Márcio Américo no blog Meninos de Kichute:

“Algumas pessoas tem tentado associar a violência cometida contra o Mário Bortolotto à arte produzida por ele. Isso é no mínimo leviano e só revela ignorância, tira o foco dos reais motivos que desaguaram nesta quase tragédia. Conheço TODA obra do Mário Bortolotto, conheço o próprio Mário e não é de hoje, e posso afirmar com toda certeza que a obra dele não tem como foco a violência, nunca teve. Há alguns personagens violentos, como tem em Nelson Rodrigues e até em Maria Clara Machado, mas a mensagem da obra do Bortolotto é para aqueles que optaram em manter-se fora deste esquema maluco que nossa sociedade montou com uma promessa absurda de felicidade. Os personagens do Mário não estão em busca de alegria, prosperidade, todos eles buscam uma só coisa: PAZ. Seus personagens são loosers, sentados, lendo, olhando o infinito, ostentando um olhar melancólico pra disfarçar talvez sua inabilidade em entender o que não faz sentido. Mário é da paz, não esta paz de pombinha branca, esta paz de passeatas com camisetas, mas a paz individual, a paz que te dá a possibilidade de sentar-se na mesa do bar, mesmo sozinho, e ficar olhando o nada, ouvindo uma boa musica, sabendo que pelo menos até aquele momento tá tudo bem.

Teve ainda pessoas que tentaram associar o nome de seu blog, ATIRE NO DRAMATURGO, à violência. Mais uma vez prova de ignorância de quem falou uma merda dessa. Atire no dramaturgo só nos revela o sofisticado background do Mário: o título é uma referência a um famoso romance policial do David Goodis - Atire no Pianista - que por sua vez remete aos clássicos do western, onde, nos salloons, havia uma placa sobre o pianista que dizia: proibido atirar no pianista. Uma ironia, aliás, outra marca registrada na obra do Mário. Atirar no dramaturgo é falar com o dramaturgo, criticar o dramaturgo, discordar ou concordar com ele, ou simplesmente agradecer por uma noite legal, por um show fraterno e pacífico. Quem fala que Mário atrai violência é porque nunca foi ao show de sua banda Saco de Ratos, onde sempre rola uma espécie de culto silencioso à fraternidade, onde pessoas sobem no palco e cantam, dançam, lêem poemas e são sempre recebidas pelo Mário com aquele seu típico abraço padrão Zé Colméia.”

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Apesar da gravidade dos ferimentos, o dramaturgo resiste bravamente e já respira sem a ajuda de aparelhos.

CINEMA LOCAL