terça-feira, 19 de junho de 2012

FOGOS DE ARTIFÍCIO

Antes de parar na frente do bar e olhar para os dois lados do quarteirão, ele definiu quem seria o primeiro: o menino sentado em cima da caixa vazia de cervejas, na calçada, de costas pra rua. O menino deveria ser o primeiro porque um menino de dez ou onze anos tem mais poder de reação, pula mais, dá mais pinote, tem mais gás e explosão na fuga.

Ele preferiu não dar sorte ao azar, embora soubesse que as munições ponta oca têm a vantagem de derrubar o alvo logo no primeiro tiro. Derrubar e matar, principalmente devido ao estrago nos órgãos atingidos. Ele também sabia que se além de ponta oca, a munição fosse do calibre ponto quarenta, o poder de parada do projétil seria ainda mais avassalador. Como diz o velho ditado: seria tiro e queda.

O garoto nem teve tempo de terminar de beber o Guaraná Antarctica. O homem sacou a Taurus e apertou o gatilho quando o cano estava quase tocando a cabeleira negra do moleque. A explosão acordou o cachorro que dormia debaixo da sinuca do bar e o impacto do tiro, de tão violento, fez o menino cair pra frente, duro, morto, como se puxado por um ímã. Na queda, o Guaraná Antarctica escapuliu da sua mão, resvalou na junção da calçada com o piso do bar e dançou feito uma bailarina, girando, girando, até parar ao lado da sua nuca já ensanguentada.

O matador adentrou no bar derrubando o casco do guaraná e atirando no centro de massa do negro, que, sem entender direito o que ocorria, ainda segurava um pouco curvado o taco de sinuca e mirava a bola branca na bola oito, que estava realmente propícia pra morrer na caçapa do meio. No momento do estampido a tacada ‘espirrou’, a bola branca se moveu devagar sem atingir nenhuma bola e o negro caiu morto com o taco na mão e dois tiros certeiros no peito.

A mulher que jogava sinuca com o negro ainda tentou correr, mas o matador a alvejou no meio das costas. (Ele tinha uma empunhadura segura, além de uma ótima mira. Era um profissional.) Quando ela caiu, ele avançou, pisou no seu ombro e disparou outro balaço, mais para certificar-se de que ela estava realmente morta. Com o disparo, uma cápsula foi cuspida contra um pôster do time do Flamengo de 2009 colado na parede e o corpo da mulher mexeu-se levemente, num falso espasmo que a força do impacto produziu.

O velho careca atrás do balcão tentava abrir a porta do minúsculo banheiro. Tentava: ela estava trancada por dentro. Seu corpo de repente ficou leve. Flashes do medo. O homem da Coca-Cola passaria realmente no dia seguinte? A pintura patrocinada pela Skol seria naquela ou na próxima semana? O desespero da morte engendra reações adversas não apenas na mente, mas também no corpo: afinal, ele tentava abrir o WC para se esconder, não para limpar o rabo melado de merda. O velho forçava a porta do banheiro mijando pelo cu! E nem adiantou gritar “Ô meu Deus do Céu!” depois de sentir um buraco quente no ombro. O matador, apesar de crente em Deus, é um matador.

Dentro do banheiro, escorado no vaso de fundo encardido, o aleijado dormia entre papelotes vazios de crack e sonhava com fogos de artifício.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

AS HORAS

Vou passando e ele me chama. 

"Ei, seu polícia , faz favor". 

Encosto na grade do corredor em frente à cela número um. 

"Diz", digo. 

"Rapaz, tem como trazer aqui pra mim o relógio que eu tava usando e que quebrou a pulseira quando os home me pegaram?"

Jogo fora a bagana do cigarro que tava fumando. Depois espirro. 

"Cara, já entreguei na casa da tua mãe. O relógio, tua bolsa, tudo que tava nos teus bolsos. Aqui na delegacia a gente não guarda nenhum pertence de preso". 

"Moço", diz um detento no fundo da cela, enquanto abre um bandeco,  "esse home tá pra botar a gente doido perguntando as hora. Toda hora ele pergunta que hora são". 

"Mas isso é normal quando o cara entra aqui", diz um segundo preso, "esse negócio de ficar querendo saber o horário".

"Acho que é a noia da primeira vez", diz o primeiro preso, mordendo uma asa de frango. 

"E pra quê tu quer saber de hora, rapaz", digo, rindo. "Relaxa. Não vai adiantar nada saber de hora. Quando tiver claro é porque é de dia, quando tiver escuro é porque é de noite."

Falo isso e os demais presos  riem bastante. Riem tanto que farelos de arroz e farofa pulam de suas bocas. 

Eram exatamente sete horas da noite, a hora da janta.

terça-feira, 5 de junho de 2012

CRACK CRACK BUM!

O tipo esguio e baixo, de um branco queimado de sol, assoma na esquina do quarteirão do Bar da Lurdes às nove em ponto da manhã, conforme o combinado na noite anterior. Ele caminha rápido e um pouco desconfiado, sempre olhando para trás. Na mão esquerda, traz um maço de cigarros WL; na mão direita, entre as falanges dos dedos amarelados, um cigarro da mesma marca fumado pela metade. Calça um par de sandálias do tipo havaianas tão gasto e encardido quanto a bermuda escura e a camisa branca em que se lê, ainda que um pouco apagada, a inscrição Feliz 2007. À medida que ele vai se aproximando, as sandálias revelam-se de cores distintas: enquanto uma é esbranquiçada e tem cabrestos verdes, a outra é completamente azul.

“Num disse que vinha às nove horas?” A voz do homem, se comparada com a mesma voz da noite anterior, parece estar um pouco mais grave e pastosa. Ele se senta à mesa e pede ao garçom uma cerveja Skol, que bebe a goles bovinos. “É a sede do crack”, diz, depois de sorver o segundo copo e servir o terceiro. Francisco das Chagas Alencar, hoje conhecido apenas como Chico Doido, já teve família e emprego fixo. Antes de se tornar dependente químico, trabalhou como torneiro mecânico na Retífica Machado de Motores, umas das oficinas mecânicas mais tradicionais de Imperatriz, a segunda maior cidade do Maranhão. Nessa época, Francisco morava com a mulher e as duas filhas – Isadora, de onze anos, e Isabel, de dez. De Francisco para Chico foram poucos tragos: “quando caiu a ficha”, como ele mesmo diz, “eu já tava feito zumbi fumando crack pela rodoviária”.

Na noite anterior, encontrei o Chico Doido na esquina do antigo Bar Olho de Boi, nas imediações do que um dia foi o primeiro terminal rodoviário de Imperatriz. Trajando a mesma roupa gasta, ele andava apressado de um lado para o outro, “fazendo favor pros outros pra poder descolar o meu”, como confessaria depois. De início, quando o abordei, o “ex-Francisco” mostrou-se desconfiado: “Tu tem cara de cana”. Com o passar do tempo e a ingestão de algumas cervejas em lata – sempre Skol, a sua marca preferida –, Chico decidiu abrir o jogo e acabou revelando que estava ali fazendo “um corre pros chegados” que sempre aparecem no setor da antiga rodoviária. A expressão “fazer um corre”, segundo ele, quer dizer “comprar droga pros mauricinhos viciados que ainda moram com os pais”. O “corre”, nesse caso, evita o contato direto do traficante da área com os viciados desconhecidos. Pra fazer esse intermédio, Chico Doido conta que ganha, dependendo do usuário, “de uma a três cabeças de crack” de cada vez. 

As “cabeças” – outra forma como o crack é conhecido – variam de dez a vinte reais. “Uma de vinte dá pra fumar uns cinco mesclados”, diz Francisco. “Mesclado” é o nome dado ao cigarro de crack, seja ele misturado com tabaco ou maconha. Outra forma de fumar a substância entorpecente é utilizando um cachimbo. Quando não se tem o cachimbo convencional, improvisa-se um utilizando uma lata de refrigerante ou de cerveja. “Isso é fumar na lata”, esclarece Francisco, “mas eu prefiro fumar no cigarro mermo”. E quantas pedras fuma por noite? “Às vezes dez, às vezes vinte, dependendo do movimento”, diz, enquanto sai apressado ao perceber o sinal de luz dado por um motoqueiro na esquina da rua Tamandaré com a rua Pernambuco. A julgar pelo movimento da noite de segunda, Chico Doido fará muitos “corres” e fumará muitas “cabeças”.

No organismo, o crack age rápido. Tão logo inalado, ele se espalha pela corrente sanguínea e começa a circular pelo corpo. A sensação de prazer é curta, o que leva Francisco constantemente a se esconder num beco entre duas casas para dar outra baforada no cigarro estrategicamente escondido entre os furos de um tijolo. O dependente quase não come ou dorme, e a magreza e os olhos fundos do Chico Doido confirmam isso.  Quando retorna de mais um “corre”, a sua respiração está ofegante. Perguntado se sabe que o crack pode gerar lesões no pulmão, ele responde “eu só sei é que dá muito é sede”, enquanto leva a latinha de Skol à boca.


Francisco nasceu e sempre morou em Imperatriz, no bairro Bacuri. Lembra que na infância, além de brincar do “Se Esconde”, chegou a banhar no riacho que dá nome ao bairro. Hoje reconhece que tudo mudou para pior, tudo foi poluído – as brincadeiras, o riacho, ele próprio. Sente saudade dos tempos de escola do geladinho de cajá no pátio do colégio, no recreio, à salada de fruta geladinha com cobertura de Leite Moça, na Praça Tiradentes.  Quando terminou o ensino fundamental da época, teve formatura e tudo. “Minha mãe chorou na hora da foto”, lembra, de olhos marejados. Aos 16 anos, foi estudar no CEFET, atual IFMA. Lá fez o curso técnico de torneiro mecânico e imediatamente começou a trabalhar na Retífica Machado. Foi por essa época que conheceu Isabela, a esposa. Ela também empregada, os dois resolveram morar juntos. Logo apareceram as filhas – “as duas princesinhas do papai”, como ele diz – e, com elas, mais vida e alegria na pequena casa da Rua Beta, número 16, coração do Bacuri.

“Mas aí veio o crack”, diz Chico Doido, tentando fugir do sol das dez da manhã arrastando um pouco a cadeira com o peso dos poucos mais de cinquenta quilos do seu corpo. A primeira vez que fumou uma pedra de crack foi quando resolveu beber uma cerveja justamente no Bar Olho de Boi. “Eu tava saindo do trabalho pra casa e o bar é no caminho”, diz ele. Nesse dia, fumou tanto com as prostitutas que fazem ponto na rodoviária que só chegou em casa às seis da manhã. “Só deu tempo de discutir com a mulher, tomar um banho e voltar pro trampo”, fala, enquanto acomoda o sexto casco de cerveja embaixo da mesa. Desse dia em diante não teve mais volta: “Com um mês eu já não tinha mais emprego nem família”, relata. Como ainda tinha dinheiro, passava as noites com as prostitutas nos motéis das cercanias da rodoviária. Quando a grana acabou, as prostitutas sumiram e ele passou a dormir na rua. “Isso foi em 2007”, diz, apontando pra camisa rasgada. “Isso foi o meu feliz 2007”.

Já são quase onze da manhã quando Chico se levanta para ir embora. Embora para onde? Com o dinheiro que descolou, vai ver se dorme um pouco num quartinho de hotel. Depois, vai passar algum tempo sóbrio vigiando motos na frente da Caixa Econômica, na Praça Brasil, centro de Imperatriz. Os outros vigias não gostam muito da presença dele, mas se o movimento for grande, ele passará despercebido e dará para apurar no mínimo uns sete reais. “Já é pelo menos o da janta”, contemporiza. Antes de sumir pelo mesmo caminho que apareceu, ele volta a falar das filhas. Diz que os olhos delas são duas bolas verdes. “Pense nuns zolhim bonito os das minhas princesas”, diz Francisco, trinta e três anos, já sem conseguir segurar as lágrimas.

Os olhos do Chico Doido também são verdes. Ainda que esverdeados de desesperança.

*

Pós-escrito: Texto que escrevi após o primeiro dia da oficina "Perfis: vidas que ensinam", ministrada na UFMA pelo professor Alexandre Maciel, do curso de Comunicação Social. O ideal seria eu participar dos três dias, mas imprevistos do trabalho só me permitiram participar de um. De todo modo produzi o perfil acima, muito embora baseado numa triste história que conheci ainda na noite de segunda. 

Pós-escrito 2: Para não compremeter as fontes, as pessoas e os lugares descritos no texto foram grafados com nomes fictícios.