sábado, 31 de agosto de 2013

UMA FOTOGRAFIA

Há uma fotografia em que apareces especialmente linda. Sentada no sofá, pernas cruzadas, rindo, com duas mechas do cabelo – um parêntese emoldurando o rosto – tentando penetrar tua boca. No lado direito, uma cachorra, dessas pequenas e espalhafatosas, está admirando – e incrivelmente, na mesma posição do cão do logo da RCA – a pequena bailarina que rodopia na caixinha de música sobre tuas pernas lisas. No lado esquerdo, um Deus sisudo toca arpa, acompanhando a melodia. Atrás, um pouco acima da estante da sala, perto do relógio cujos números são frutas – uma banda de maçã, um cacho de uvas –, o calendário de uma loja de autopeças marca dois mil anos. Mas ainda estamos em Mil Novecentos e Noventa e Nove, e teus olhos, duas tochas vermelhas reveladas pelo flash da Yashica, indicam que morrerá dali oito meses, de câncer, com um túnel negro estendido entre tuas entranhas e tua boca murcha, enfim penetrada pelas duas mechas – que são, agora, dois tentáculos rasgando-te a cara, como nos mangás japoneses.