segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

TRINCHEIRA

Entrincheirado dentro de casa sem água e sem energia
empurro os sofás e o armário e o corpo da menina contra a porta
Chutes tentam arrombá-la, mãos delizam pelas folhas das janelas
O pânico me faz recarregar as armas já carregadas
Sei que equipes da swat rondam pelo lado de fora
Ouço o megafone da xerife exigindo minha rendição incondicional
e atiro a esmo até descarregar minha pistola - tec! tec! tec!
De fora respondem com rajadas de metralhadora
Chutes de coturno forçam a porta, aviões cruzam o céu cor de chumbo
Olhando pelo buraco da janela, recarrego meu rifle enquanto
dezenas de pitt bulls pousam de paraquedas nos meus sonhos

domingo, 20 de novembro de 2011

A VIDA É DOCE



Por volta dos anos 2.000, quando os CDs custavam cerca de 35 reais ou mais, o Lobão mandou a indústria fonográfica tomar no cu e lançou nas bancas de revista o seu disco “A Vida é Doce”, que custava míseros 8 reais. Num desses sábados quentes pra caralho, ao sair do trampo e descer pela Dorgival, parei na banca perto do Hospital São Rafael e comprei o meu Lobão. Com o troco que sobrou da nota de 10, peguei o busão pra casa feliz com a nova aquisição. O disco era (e é) tão bom que ainda vinha com um livro manifesto recheado de pequenos textos de grandes escritores. Pela qualidade das músicas, a guinada profissional do Lobo, os CDs todos numeradinhos, o José Flávio Júnior da Bizz definiu o “A Vida é Doce” como uma “declaração de independência de alta classe”. E sábado após sábado, aproveitando o meu descanso de jovem operário, eu punha o CD pra rodar no meu micro sytem parcelado na Liliane e deitava - banho tomado logo após o almoço - no piso de cimento queimado do meu quarto. Era cada música triste e amarga, tanta dor e raiva de uma vez só. Meus olhos fechados às vezes mareavam. Minhas costas suadas deixam uma mancha escura no chão. Foi ouvindo o “A Vida é Doce” que rompi as últimas membrana da adolescência.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

OBSCENAS

Na feira seios que pareciam frutas
Algumas adolescentes mais grávidas que as outras
Então o pau duro latejando no velório da viúva
Necrofilia, pedofilia, disritmia
Língua passeando pela beirada do cu da donzela
E no terreno baldio eu ia enfiando
- um por um -
os absorventes na boca da boneca

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

AS MELHORES COISAS

As três primeiras cervejas. Ser adolescente e paquerar pela janela do ônibus parado no semáforo. Tocar air guitar num show de rock. Um alvará de soltura às oito da manhã. Criança de domingo na cacunda do tio. Beijo mentolado. Acordar de ressaca num dia chuvoso, cobrir-se e voltar a dormir. Aquele poeminha do Gullar que fala de uma mulher mais bonita que uma bola prateada de papel de cigarro. Gatinhos roçando nossas canelas debaixo da mesa. Soltar o guidão da bicicleta. Bebês sonhando. E claro,  a cena do velho e dos três jovens almoçando, conversando e aparando as suas diferenças, à beira mar, no filme Morangos Silvestres.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

"Um novo relatório oficial sobre a ditadura de Augusto Pinochet, o terceiro em 20 anos de democracia, eleva para mais de 40 mil as vítimas desse regime

(...)

O documento entregue nesta quinta-feira pela Comissão Valech, que atualiza outro relatório feito em 2004, acrescentou 9.800 novas vítimas de torturas e prisão política, que se somam às 27.255 reportadas inicialmente, e 30 novos casos de desaparecidos e executados, que se acrescentam aos 3.195 certificados oficialmente até agora.

Desta forma, o total de vítimas oficiais entre executados, desaparecidos e torturados durante os 17 anos que durou a ditadura de Pinochet (1973-1990) subiu para 40.280, apesar de entre os grupos de vítimas se estimar que a cifra possa superar os 100.000.

(...)

Não há dúvida de que isso é um novo passo na abordagem, nas políticas públicas que o Estado do Chile teve em relação às violações aos direitos humanos no tempo da ditadura", disse María Luisa Sepúlveda, presidente da comissão, depois de entregar o relatório ao presidente Sebastián Piñera.

A comissão reabriu seu trabalho por 18 meses e recebeu no total o depoimento de mais de 32 mil pessoas, mas a maioria destas ficou de fora do relatório após terem sido feitas as verificações ou porque não estavam dentro dos parâmetros definidos para a qualificação de vítimas.

"Há pessoas como os filhos de vítimas que sofreram invasões de domicílio violentas, onde seus pais foram vítimas de prisão e às vezes de execução, que não estão dentro do mandato porque não foram vítimas diretas", explicou Sepúlveda.

"Há outros casos que estavam fora de mandato porque não se pôde provar a motivação política dos casos ou por falta de antecedentes", completou.

"São altamente preocupantes os critérios usados para qualificar as novas vítimas. Pelo nível de repressão que houve nos 17 anos de ditadura e o número de denúncias, o número de vítimas pode passar dos 100 mil", disse à AFP Lorena Pizarro, presidente do Grupo de Familiares de Detidos Desaparecidos (AFDD).

(A matéria está publicada na íntegra na página http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/08/novo-relatorio-sobe-para-mais-de-40000-as-vitimas-da-ditadura-de-pinochet.html)


Em tempo: se vocês pesquisarem no Google "mortos e desaparecidos no Chile", encontrarão poucos links sobre o tema, mas numerosos blogues da extrema-direita que minimizam o genocídio praticado no Chile durante a ditadura de Pinochet, comparando este regime com o de Fidel Castro, em Cuba (que chegou ao poder num movimento revolucionário apoiado pelo povo cubano, e não por um golpe militar planejado nos Estados Unidos). Vamos mudar as estatísticas no Google? Se você está de acordo, por favor, copie este post e cole em seu blog.

Nota do Hotel Subterrâneo: copiei o texto acima - originalmente publicado no G1 - do Blog Cantar a Pele de Lontra.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

ZONA ALTERNATIVA AGITA O SÁBADO

Neste sábado, 6 de agosto, acontece  o "Projeto Zona Alternativa 5". (Não gosto do termo "projeto". Pra mim, projeto tá mais pra arquiteto e administrador.) Será na Praça da Cultura, Centro de Imperatriz, a partir da 16h. Puxado por Carlos Leen , o Zona Alternativa, como o próprio cartaz de divulgação indica, já vai para a sua quinta edição. No melhor estilo "façamos nós mesmos", o ZA reúne diversas vertentes artísticas da cidade, de malabares a bandas de rock, de grupos de rap a grupos de bêbados. No Facebook, expecula-se que a banda Projeto B (outra vez o "projeto" pelo meio) desfalcará o evento, haja vista que o infante grupo musical tem apresentação confirmada no Boteco do Frei, no mesmo dia. Outros grupos musicais e não musicais sugeriram a mudança da data do evento, do dia 6 para o dia 7, o domingo seguinte. Em comentário postado no Facebook, Carlos Leen informou ser impossível tal mudança. Falta de comunicação? Falta de "projeto"? Um ponto negativo, enfim. Mas que foi compensado positivamente pela garantia de banheiros químicos e cestos de lixo nesta edição do ZA. 
 

quarta-feira, 20 de julho de 2011

REPÓRTER NÃO PODE GRAVAR EM DELEGACIA SEM AUTORIZAÇÃO

No programa Bandeira Dois, exibido em Imperatriz diariamente pela TV Difusora Sul, foi veiculada uma matéria em que um delegado de polícia determina a retirada de uma a equipe de reportagem do interior de uma delegacia. No entendimento da AIRT - Associação de Imprensa da Região Tocantina, que veiculou Nota de Repúdio acerca do assunto, o delegado agiu à margem da lei. A nota - reproduzida em itálico abaixo - chega a falar em "desrespeito à liberdade de expressão e um afronto contra os trabalhadores no exercício da profissão".

A Associação de Imprensa da Região Tocantina – AIRT, repudia veementemente a atitude do delegado de Polícia Civil, Leonardo Carvalho, contra a equipe do Bandeira 2, programa da Difusora Sul, Canal 7, Afiliada do SBT. Na noite de segunda-feira (18), Os repórteres Leo Costa e Batista Filho, preparavam uma matéria sobre a condução de dois homens e uma mulher que estavam sendo conduzidos por Homens da Força Tática – FT 02, do 3º Batalhão da Polícia Militar, quando de repente foram surpreendidos pelo delegado Leonardo Carvalho (o mesmo que envolveu-se em polêmica com profissionais de Imprensa durante o depoimento do acusado de ter matado o irmão do prefeito de Montes Altos-MA) determinando que a equipe se retirasse da permanêcia, sob pena de aplicar os procedimentos – que não se sabe se seria a prisão da equipe ou outro tipo de atitude. Vale-se ressaltar que este caso não foi de forma isolada, haja vista, que na mesma noite a autoridade policial havia determinado que a equipe do programa “Na Boca do Povo”, exibido na Rede TV/Imperatriz, Canal 5, também se retirasse, com as mesmas alegações feitas para a equipe do “Bandeira 2″. A Diretoria da AIRT entende que foi um claro ato de desrespeito à liberdade de expressão e um afronto contra os trabalhadores no exercício da profissão.

Outrossim, a AIRT espera que a partir de agora, o delegado Leonardo Carvalho se paute em assuntos de real interesse a coletividade e que tenha a grandeza de se retratar, desculpando-se com a imprensa, que tem procurado fazer um trabalho conjunto com a Polícia Civil. Neste caso, quem sai ganhando é a sociedade.

Ozias Pânfilo – Presidente da Associação de Imprensa da Região Tocantina – AIRT

Ouso tecer comentário sobre o caso. 

No início desse ano, a imprensa, o Ministério Público, a Polícia Militar e a Polícia Civil se reuniram para estabeler os parâmetros da realização de reportagens dentro das delegacias do município. Ao final da reunião, foi elaborada uma ata - uma espécie de "ajustamento de conduta" -, que após lida e aprovada, foi assinada por todos os presentes. Em seu item número 6, diz o tal documento: "Somente serão permitidas imagens no interior da delegacia, em sala reservada, após autorização da autoridade policial e do preso." Em sua Nota de Repúdio, Ozias Pânfilo não deixa claro se o repórter pediu autorização à autoridade policial. Se não pediu, ou se pediu e o delegado não autorizou, ele não poderia estar ali dentro captando imagens. E muito menos na permanência do Plantão Central, que não configura "sala reservada". Sublinhe-se ainda que na mesma ata é estabelecido que o preso só pode ser filmado mediante sua autorização expressa, seja escrita ou verbal (neste caso, deve vir gravada junto com a reportagem), em conformidade, aliás, ao que já estabelecia a instrução normativa do 01/2007, do  Ministério Público Federal de Imperatriz.  Mesmo assim, no dia seguinte, o repórter veiculou as imagens dos presos, do delegado e do interior da delegacia, apesar de não informar se recebeu autorização para tanto. 

P.S.: Recentemente, a Rede TV foi condenada a pagar indenização de 50 mil reais por ter veiculado indevidamente a imagem de um desembargador durante uma reportagem. Também recentemente, um jornal de Imperatriz postou no Youtube a briga de duas mulheres na permanência de uma delegacia da cidade, afirmando que as mulheres seriam usuárias de drogas. E de fato, além de parecerem drogadas, estavam em farrapos, sujas e mulambas - mas isso dá direito a expô-las mundialmente via internet? Imagino se fossem dois juízes no lugar das duas "drogadas". Será que o tratamento dispensado pelo jornal - postar a briga no Youtube - seria o mesmo? 

quinta-feira, 14 de julho de 2011

DOIS URUBUS NA PLACA

Embora fosse cedo da manhã, acordei com a quentura dos raios do sol lambendo o lado esquerdo do meu rosto. Tive dificuldade para abrir os olhos, como se eles estivessem impregnados de alguma substância grudenta. A cabeça doía e pesava. Uma dor fina. Só aos poucos fui distinguindo as coisas, tal um animal que sai abruptamente de uma caverna, e vi que estava deitado num terreno baldio, algo parecido com um pasto, ou um campo de juquira, ou qualquer outra vegetação rasteira de beira de estrada.

Beira de estrada: supus isso porque consegui distinguir, não muito longe, o som de carros, caminhões, motocicletas. Pareciam percorrer uma pista de trânsito rápido, uma rodovia. Apesar de tonto e da respiração ofegante, tentei me levantar. Nada. Não senti minhas pernas nem meus braços. Só consegui erguer um pouco a cabeça e ver, às margens da pista, uma placa de trânsito retangular onde repousavam dois urubus. Foi quando lembrei: a boate, a prostituta loira, a ponte, os tiros nas costas, nos braços, nas pernas, no rosto.

Cheiro do queijo. É isso. Os caras fizeram a minha casa direitinho, sem levantar suspeitas. Quanto pagaram pra loira me seduzir? Quanto tempo esperaram na beira da estrada até que eu estacionasse debaixo da ponte e a prostituta começasse a baixar o zíper da minha calça? Mundo cão, lei do cão. Duzentos gramas, o que são duzentos gramas pra quem movimenta milhões?

“Chupa por cinquenta?”

“Chupo sim, delícia, e ainda engulo o leitinho”.

Filha da puta! Mas que puta mais filha da puta! E eu, o único com curso superior no morro, caí direitinho.

“Mas aqui não, menino. Vamo pro teu carro. Tem uma ponte ali. Debaixo da ponte. Não passa ninguém lá.”

“Não confia em ninguém, chapa”, sempre me disse o Negão, que nem ensino fundamental tem. Nunca levei muito a sério os conselhos do Negão. Sou um babaca, sou um mané. Os caras ainda esperaram a Samanta – assim ela disse que se chamava – me fazer gozar. A última ejaculação. Depois, só senti a mão pesada do Queixo de Bode me agarrando pelo cabelo e me puxando pra fora do carro. Pela janela, como um moleque.

“Morreu, otário!”

Em seguida, o cano da 380 do Pezão pressionando a minha nuca, enquanto do meu pênis, já flácido, pingavam as últimas gotas da ejaculação precoce.

“Bora, levanta, caminha!”

Ao mesmo tempo em que me empurravam pra beira da pista, me davam tapas na cara e chutes na bunda. Calça arriada, enxotado como um cachorro, não tive tempo de falar nada. 

“Pega cinquenta conto na bolsa dele aí, Quexada.”

Nem senti o Queixo de Bode metendo a mão no meu bolso e pegando cinquenta reais pra pagar a prostituta. Naquela hora, na realidade, eu só sentia uma coisa: o Pezão arrebentando a minha cara de coronhada.

“Tá vendo essa placa aqui?”, gritava ele, enquanto me batia. “Grava bem ela, otário. Grava bem pra quando tu chegar no inferno e o capêta perguntar onde foi que tu morreu.”

“Não, cara, pelo amor de Deus, cara! Não faz isso comigo não, Pezão! Te pago na segunda!”, supliquei, com a boca borbulhando sangue.

“Que mané paga na segunda o quê, otário. Pagamento na segunda de cu é rola. Toma!”

Aí os dois primeiros tiros, na junta dos dois braços. Em seguida mais dois, nas bolas dos joelhos. Caí novamente e depois fui arrastado pra dentro do mato.

“Aqui tá bom”, ainda ouvi o Queixo de Bode dizer, e em seguida recebi mais uns três tiros, nas costas e na cara.

Depois foi só o breu crescendo e o som de passos e portas de carro batendo e pneus queimando longe, cada vez mais longe, até eu não ouvir mais nada e apagar por completo – pra acordar só agora, com a cara inchada e o corpo todo furado. Agora, por volta das oito da manhã. Só. No meio do mato. Aleijado. Vendo apenas uma placa de beira de estrada com uns urubus em cima dela com as asas abertas. Devem tá tomando banho de sol, os malditos. Urubus de BR. Urubus medonhos.

Por sorte ainda não comecei a feder. Certamente não. Quando começar, eles sairão de lá e virão aqui pro meu lado, pra me velar. Depois, quando verem que eu já tiver virado presunto, vão me cheirar e em seguida vão começar a me bicar. Vão me comer, esses filhos da puta. Vão provar o meu pulmão preto, mastigar o meu fígado cheirando a álcool. Se duvidar vão até sentir o gostinho dos restos da pizza de Catupiri que eu comi na boate com a prostituta.

Fazer o quê? Come quem tem fome. Só me resta desejar-lhes uma boa refeição. Que dividam os meus olhos, um pra cada, mas que não metam o bico no meu cu. Que voem com minhas tripas penduradas no bico. Que bebam o resto do meu líquido prostático. Que suguem o meu sangue. E se souberem falar, que me informem qual o maldito KM que tá escrito na placa onde eles tão tomando banho de sol. Um babaca, um mané. Se o capêta perguntar, nem sei dizer em qual quilômetro morri.

terça-feira, 12 de julho de 2011

DIRT RODÓ

no último dia da rodoviária que nunca dorme
os portões do bar olho de boto continuam arqueados
o mototaxista com hérnia de disco aparece na esquina
parado debaixo do poste ele parece um sapo gordo
luz alta e luz baixa quer dizer pó e pedra

um noia com furúnculo no peito do pé
sai pulando qual saci numa amarelinha junkie
as putas grávidas se levantam na porta dos motéis
rush na madrugada, morimbundos no jardim das delícias
são três da manhã e o ônibus da guanabara chega de teresina

terça-feira, 5 de julho de 2011

INSONE PAVOR

Após deitar na cama e na iminência
da vigília transformar-se em sono,
as duas pernas brutalmente
contraídas e descontraídas em
meio segundo ou menos. O
abrupto escorregão que apesar
de fatal não derruba o corpo – o
corpo já caído sobre os negros
lençóis da madrugada. O coração
disparado depois do susto. Medo
absurdo. Pavor em estado bruto,
quase morte. Medo de dormir o
sono, penetrar lúcido no sonho e
descobrir que enquanto dorme,
sete cavalos de olhos vazados
invadem o quarto e montam guarda,
fazem austera sentinela junto à
cama. Se acorda, capaz a morte
ante o tropel do potros assustados
abandonando o quarto, rompendo
a membrana que não sabe se do real
ou do irreal. Se dorme, provável
morrer atropelado pelos cascos
dos flamejantes quadrúpedes que
fugiram do quarto e penetraram no
sono, no sonho, na consciência do
homem tenso sobre a cama.

Dormir acordado apavora homens
e cavalos.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

NA ESCOLA, LÁ LONGE

no primeiro dia voltei pra casa soluçando e querendo a minha mãe, o conga
novinho ficou todo molhado de pranto e o meu pai ameaçou me dar uma surra

no segundo dia eu continuava sem entender. mas o que diabo era aquilo, um
bocado de menino sentado um atrás do outro e uma velha na frente falando?

no terceiro dia apareceu uma menina que não tinha aparecido ainda e trouxe
com ela a tira colo uma bolsa de plástico muito colorida com suco e bolo dentro

no quarto dia eu e mais dois colegas operamos a menina da lancheira nos fundos
da escola. cirurgia delicada mas valeu a pena: provamos o bolo e o sucozinho dela

no quinto dia alguém riscou fósforo no meio da aula, alguém peidou, alguém viu
jesus na parede, alguém chorou, o professor de dois mais dois se matou enforcado

no sexto dia a tia apujaci contava a parábola do bom samaritano e eu desenhava
bocetas aladas querendo que elas saíssem do caderno e voassem pela sala

terça-feira, 7 de junho de 2011

FIGURAS DO MEU ÁLBUM (V)

NICE REJANE ("RÊ BORDOSA")
Lembro-me bem do poema que ela declamou no palco do Ferreira Gullar, num desses finados festivais de poesia. Os versos eram bons e falavam da Copa do Mundo de 1982, do Paolo Rossi e – acho que na verdade não lembro bem – de um homem ou uma mulher caolha. Lembro também que em determinado momento ela levantou a blusa – estava vestida como uma autêntica Rê Bordosa – e mostrou os seios fartos e profanos para o público ignaro. Que seios, que mamas, que peitos. Eu já mamei na Nice Rejane. Não nas tetas, mamãe. Eu mamei nos lábios da Nice durante todo um show da banda Catarina Mina no saudoso TNT Cocktails. Nessa época ela era acadêmica de História e de vez em quando andava pela Uema nua e pintada de lama na companhia de um estudante de letras distribuindo um jornal que, se me lembro bem, se chamava Anticristo. Salvo engano ela ainda andou algumas vezes na companhia desse estudante – só que vestida e para o fórum, por conta dessa desobediência civil. Nessa mesma época, pouco antes de conhecê-la, eu era um cara magrinho recém-entrado na Uema que fumava compulsivamente e observava aquilo tudo com curiosa timidez. Mas vai que um dia, ou uma noite, eu a conheci. No bar do Gil, creio. E bebemos cerveja e conversamos e combinamos de nos encontrar para assistir alguns filmes. E de fato passamos a assistir diversos filmes lindos nos sábados à tarde. Dois, às vezes três filmes de uma tacada só. E depois saíamos zonzos de tanto cinema para o Bar do “Seu” Berla, para em seguida, mais zonzos – agora de cerveja – descer a ladeira da beira rio e dançar ao som de uns rocks e outras músicas estranhas para o ambiente, que escolhíamos literalmente a dedo na jukebox do Cais Bar. Doors, Cassia Eller, Pink Floyd. O bar inteiro era obrigado a ouvir nosso gosto musical e a tolerar a imagem dos nossos esqueletos bêbados balançado desengonçadamente entre as mesas sertanejas. Ainda guardo aqui nos meus arquivos, numa caixinha de papelão, o belo convite de um dos seus aniversários. Porque os aniversários da Nice são os melhores. Parafraseando o Nani Viera, “a melhor cerveja, o melhor churrasco”. Lembro-me especialmente de um que aconteceu na Vila Ipiranga. Cheguei lá e já encontrei o Gilberto Freire com sua Coca-Cola KS, a Didi falando alto, o Pinho abraçando a Didi e tentando beijar o seu pescoço por trás e o Benzão assando a carne entre um baseado e outro, além de diversas outras figuras bêbadas e felizes. Acho que nesse dia tão especial a Nice tava de bode com o Partido, porque em determinado momento – acho, não tenho certeza, eu já tava “alto” – ela pegou uma bandeirinha com a estrela do PT e falou alguma coisa, um desabafo, um desagravo regimental. A Nice, aliás, argumenta muito bem. Cansei de vê-la pegar o microfone em alguma greve ou eleição da Uema e deixar no chinelo alguns pobres mortais de argumento diferente do nosso – porque felizmente os argumentos sustentados pela Nice eram sempre convergentes aos nossos. Feliz de quem dividir a cama, a mesa e o banho com a Nice, essa menina às vezes amarga e sarcástica que tem uma gaitada deliciosamente incomum. “Enfim” – pra usar uma expressão que lhe é recorrente – já faz um tempo que não a vejo. Ao menos não a vejo com frequência. É que a gente acaba tomando outros rumos. “Se institucionalizando”, como diria o Josias Moraes, e isso acaba nos privando de algumas pessoas. Mas sempre que a vejo, nem que seja dormindo bêbada numa cadeira num fim de festa, como a vi recentemente no Boteco do Frei, me dá uma sensação boa. Nesse dia, aliás, quando tava indo embora, dei um beijinho de leve na sua face, cuidando para não acordá-la. Porque lhe desejo os melhores sonhos. Porque gosto demais dessa Rê Bordosa. Porque pra mim, ela, como diz o texto do Oscar Wilde sobre amizade que li pela primeira vez no seu convite de aniversário, é daquelas pessoas escolhidas não pela pele, mas pela pupila, porque tem aquele brilho questionador e aquela tonalidade inquietante.

domingo, 5 de junho de 2011

TOM WAITS

Algumas músicas do Tom Waits são como a mão pesada de um Deus vingativo recaindo sobre os infieis. E escutá-las é como acariciar rolos e rolos de arame farpado.
  
Christmas Card from a Hooker in Minneapolis.
(Cartão de Natal de uma puta de Minneapolis.)


Charley I'm pregnant/and living on 9-th street/right above a dirty bookstore/off cuclid avenue/and I stopped taking dope/and I quit drinking whiskey/and my old man plays the trombone/and works out at the track./and he says that he loves me/even though its not his baby/and he says that he'll raise him up/like he would his own son/and he gave me a ring/that was worn by his mother/and he takes me out dancin/every saturday night./and hey Charley I think about you/everytime I pass a fillin' station/on account of all the grease/you used to wear in your hand/and I still have that record/of little anthony & the imperials/but someone stole my record player/how do you like that?/hey Charley I almost went crazy/after mario got busted/so I went back to omaha to/live with my folks/but everyone I used to know/was either dead or in prison/so I came back in minneapolis/this time I think I'm gonna stay./hey Charley I think I'm happy/for the first time since my accident/and I wish I had all the money/that we used to spend on dope/I'd buy me a used car lot/and I wouldn't sell any of em/I'd just drive a different car/every day dependin on howI feel./hey Charley/for chrissakes/do you want to know/the truth of it?/I don't have a husband/he don't play the trombone/and I need to borrow money/to pay this lawyer/and Charley, hey/I'll be eligible for parole/come valentines day.

ei charley estou grávida/vivendo na rua nove/bem em cima de uma livraria suja/quase na avenida cuclid/e parei de me drogar/e deixei de beber uísque/e meu velho toca trombone/e trabalha nas ruas./e diz que me ama/mesmo que não seja dele o bebê/e diz que vai criá-lo/como se fosse seu/e me deu um anel/que foi usado por sua mãe/e me leva pra dançar/todo sábado à noite/e ei Charley penso em você/toda vez que passo por um posto de gasolina/por causa de toda aquela vaselina/que você usava no cabelo/e ainda tenho aquele disco/do little Anthony & the Imperial/mas alguém roubou meu toca-discos/o que você acha?/ei charley quase fiquei louca/depois da prisão do Mario/logo que voltei a Omaha/pra viver com meu pessoal/mas todos os que conhecia/estavam mortos ou na cadeia/e voltei a minneapolis/esta vez acho que vou ficar/ei charley acho que sou feliz/pela primeira vez desde meu acidente/e queria ter todo o dinheiro/que eu gastava em drogas/compraria um lote de carros usados/e não venderia nenhum/pra poder dirigir um diferente/dependendo de como me sentisse/ei Charley/pelo amor de Deus/quer saber/a verdade?/não tenho marido/não toca o trombone/e preciso de um empréstimo/pra pagar o advogadoe Charley, ei/poderei sair sob fiança/vem no Dia dos Namorados

Tradução: Blog Maloka Elétrica.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

DESAPARECIDA

A garota ao lado chama-se Poliana Galheiro Leal e está desaparecida desde o final da semana passada. Segundo familiares, na sexta-feira, 20 de maio, ela esteve em Imperatriz, onde recebeu R$ 1.900,00 referentes a direiro trabalhista, e no mesmo dia à tarde embarcou num ônibus da empresa Nova Sião com destino a Amarante, onde mora. Foi vista pela últmia vez em Buritirana, na praça da cidade, sozinha. Nesse dia eu estava trabalhando e diligenciei à sua procura. Um homem que a viu afirmou que ela reclamava de tontura e enjoo em função da viagem de ônibus. Até agora está tudo muito estranho. Muito boato e pouco fato. Enfim, qualquer informação sobre o seu paradeiro pode ser repassada através dos telefone 3532-2159 (Delegacia de Polícia de Amarante), 3525-1545 (Plantão Central de Imperatriz) ou 190 (Polícia Militar).

quarta-feira, 18 de maio de 2011

CLAYTON CRONISTA

Dia desses, na saudosa (já?) terça jazz do Boteco do Frei, encontrei dois antigos amigos, Clayton Noleto e Márcio Papel. Noite de boas risadas, muitas cervejas e alguns pasteizinhos. Tanta conversa fiada e à vista que esqueci de falar pro Clayton - candidato à Câmara Federal na eleição passada - que tinha lido um texto dele na internet. Da época que ele tinha um blog, no finado ano de 2.007. Texto tão bom e tão bem escrito que faço questão de compartilhar por aqui:



SOBRE VERDADES UNIVERSAIS

Estou convencido (pra usar uma expressão cara ao nosso presidente) de que as chamadas verdades universais são falhas. As verdades universais constituem um instrumento poderoso utilizado por sábios desde tempos imemoriais com objetivo de reduzir a uma frase de efeito um tema complexo e de difícil definição. Não desejo, porém, nem poderia, escrever um tratado filosófico. Anseio apenas por relatar um fato ocorrido comigo há algum tempo.

Quando eu tinha 19 anos, conheci uma garota de Brasília de 16 anos. Ela era metida a moderninha. Lindíssima. Eu gostava disso, é claro. Ouvíamos Chico Buarque e, vá lá, conversávamos a respeito de filosofia (mas nem com tanto respeito assim, se me permitem o trocadilho infame e o clichê sem ironia). Ela dizia que me admirava, que gostava de mim. Apaixonei-me por ela. Engatamos um namoro. Mas eu sei que ela gostava mesmo (ou também) era de um playboy com seus carrões, motos possantes, dinheiro no bolso e afeito a um espelho. Havia diversidade nos relacionamentos dela (uma forma de dizer que rolava traição). Não sei dizer se, à época, eu sabia e fingia que não sabia (era mais confortável) ou apenas desconfiava e tinha medo de descobrir a verdade. Um tempo depois, ela mesma me procurou e disse que não dava mais. Estava apaixonada por outro. Tinha encontrado mais carinho e atenção. Um exemplo clássico de vitimologia. Eu havia me tornado o culpado. De repente, tinha sido eu o causador do fim do romance. Afinal, estivera ausente, segundo ela, em demasia. Confesso que não me lembro de ter ficado tanto tempo ausente. Mas tudo bem. Terminamos o namoro, embora com algumas recaídas. Lembro-me que ela, finalizando o romance, elaborou algo como "eu te admiro, mas não te amo".

Moral da história 1: eu, no anseio de tornar uma máxima filosófica minha experiência, escrevi num velho caderno de folhas amarelas: "as mulheres não amam os homens que admiram" (estou me recompondo, após uma longa gargalhada).

Moral da história 2: minha máxima filosófica atual, depois de 11 anos: "As mulheres terão dificuldade de amar um homem, mesmo que o admire, se ele for feio, andar de bicicleta e sem nenhum tostão no bolso".

Não tem filosofia que dê jeito!

sexta-feira, 13 de maio de 2011

XILOGRAVURA

Clica na imagem. Aumenta o zoom. Depois liga pro Cláudio.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

DE FILME EM FILME

Fast Film (2003), curta de animação do austríaco Virgil Widrich.

terça-feira, 26 de abril de 2011

FIGURAS DO MEU ÁLBUM (IV)

GERALDO ( VULGO "G.G. GONZAGA", "LEREU", "GENERALDO")

Duas moscas gordas esperneavam dentro do copo de cerveja. Minha mãe falou: "Seu Geraldo, caiu umas mosca aí no seu copo". Geraldo elevou o copo na altura da cara. Olho-o com uma típica desaprovação de beiço. "Essas inseta vão beber agora é dentro do meu bucho" - e virou o copo na frente de três gerações da minha família. A cena acima se passou na varanda da minha casa, após um bucólico almoço preparado por minha mãe. Era um sábado e ela acabava de conhecer o Geraldo. Eu sabia que isso poderia acontecer. Conheço os modos desse velho há muito tempo. Não foi a primeira nem a última presepada. Consta no seu currículo até a apologia ao incesto durante outro almoço no seio de outra família. Não tem jeito. Ele fala o que pensa. Na lata, sem concessões. E também faz o quer com sua vida breguessa. Tanto que se mandou de Manaus e veio morar em Imperatriz. É o mestre dos apelidos – foi ele quem me apelidou de "Luís Mulher" – e o doutor da mentira paulatinamente transformada em verdade – espalhou tanto o boato de que o Carlinhos namorava o Iuri que muita gente acreditou. Nem os filhinhos do segundo casamento escaparam: Maria Fernanda ganhou a alcunha de "Má Fé" e Jorge transformou-se em "Coco" (como se vê o Geraldo não vale um relógio usado das bancas do Troca-Troca). Também é um exímio comprador de velharias. Moto velha, carro velho, bicicleta velha, tudo que funciona precariamente lhe interessa. Há quem diga que ele teve um affair com o João Ricardo, um estudante de administração de São Luís que passou pelo CESI/UEMA. Ele não afirma nem nega. Apenas sorri e diz que já vai para o oitavo cu.Toca violão e dá pitaco em som como só ele mesmo. Qualquer equalização que não seja a sua é irregular. "Ei, tá muito estridente", ele grita da mesa do bar e depois se levanta pra "arrumar" o som da caixa amplificadora. O Geraldo é um humilhador caridoso. Lembro que quando a gente era um bando de desempregado, geralmente ele pagava as contas dos bares sozinho. Antes, porém, ele pedia contribuição dos presentes. Como pouca gente contribuía, ele sacava algumas notas do bolso e as espalhava sobre a mesa. Depois olhava pra gente e dizia: "Quem tem bota, quem não tem tira". Caso alguém persistisse em não contribuir com a vaquinha, ele interpelava: "Então tira!". Aí, quando o liso tirava alguma nota de cima da mesa (e era obrigado a tirar), ele dizia: "Agora bota!". O Geraldo também é um entrosado. Gosta de andar com gente jovem. Uma vez o vi descendo a ladeira Beira Rio rodeado de pivetes, com uns braceletes de metaleiro nos braços, indo para um show na antiga Usina. Em outro show de rock – este de rock evangélico, diga-se – ele começou a pregar a favor do diabo no meio da massa de fiéis. Na praça da cultura ele tomou o microfone das mãos de um vocalista de uma banda punk e falou que, depois do show, todo mundo estava convocado pra ir com ele pras Quatro Bocas de Fumo. Quer ser pra sempre um rapazola, esse Geraldo. Afinal ainda lembro que durante uma mostra de poesia regada a álcool e música na UEMA, após ler alguns poemas que estavam pendurados no mural em frente ao DCE , o Geraldo olhou pra mim e falou sério, com seu chiado amazônico: “Luís, aconteça o que acontecer na vida, eu só não quero perder a jovialidade”. Não perderá, meu velho. Não perderá.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

CINECITTÀ

Film-Film-Film! (1968), curta de animação do russo Fedor Khitruk.



terça-feira, 19 de abril de 2011

FIGURAS DO MEU ÁLBUM (III)

JOSÉLIO (VULGO "JOHN JOE")

E aí? O sistema tá online ou offline? O Josélio é o cara que adora mudar desnecessariamente uma cadeira de lugar, ligar e desligar as luzes – só pra ter o prazer de apertar o interruptor - e passar a flanela na mesa que acabou de ser limpa. É o seu jeito altamente conectado ao mundo moderno. E ele fala inglês como nenhum inglês - Wain Instains! - , além de consertar telhado, pia, pintar parede e fazer gambiarra nas fiações da Cemar. Pau pra toda obra. Mas foi como garçom do bar do Claudeci que ele mais gostou de atuar, principalmente porque às vezes ele bebia mais do que os clientes. Tinha noite que ele montava na bicicleta e ia dar uma volta pela praça União, deixando o bar sob o comando dos bêbados. Mas logo em seguida ele voltava e antes de  descer da bicicleta dizia: “Vagabuuuuuuuuuuuuuundos”. Nessa época o Josélio não dormia, era vinte quatro horas ligado. Chegava em casa às cinco da manhã e saia às seis. Vivia tanto tempo no bar que algumas vezes as pessoas indagavam: “Mas o Josélio é casado com quem mesmo? Com uma mulher ou com o Claudeci?” Realmente era muito amor entre os dois. Tanto que às vezes eles brigavam e o John Joe sumia por uns dias. Mas depois retornava assoviando e sorrindo como se nada tivesse acontecido. E ia logo nas mesas perguntar em castelhando: “Tá farltando arlguna cosa aí, hombre?” Hoje o Josélio está "trabalhando sério" num "estabelecimento comercial sério" lá pras bandas da Bernardo Sayão. Ah, mas como eu gostaria, agora, de beber uma cervejinha bem gelada servida por esse maluco.

domingo, 17 de abril de 2011

FIGURAS DO MEU ÁLBUM (II)

ALAIN DELON (VULGO "ALAIN DELOX", "ALÁ", "ALADIM")

Já vai pra uma década que conheço o Alain. Acho que o vi a primeira vez no TNT. Na época ele era magro (anda um pouco gordinho), solteiro (já casou uma vez), filho (hoje é pai), desempregado (bancário, quem diria, virou bancário) e gostava de bebericar uma cerveja (hoje bebe de tudo, até perfume). Rolou de cara entre a gente um contato imediato do terceiro grau. Nos encontrávamos no TNT e perambulávamos mulambeiramente pela beira rio com uma granadinha na mão. "Sapopara, o sapo para mesmo", foi o slogan que ele deu à cachaça. Depois passamos a nos ver nas sextas culturais da UEMA. Sob o pretexto das "manifestações regionais", bebíamos até amanhecer no pátio da universidade. Teve uma vez que nós (eu, ele e outros estudantes) recepcionamos bêbados os alunos do curso sequencial de administração, sábado cedinho. Eles ligaram irritados pra Brunildes (diretora do campi na época) que apareceu baixando o som da caixa amplificadora e chamando o Alain de “Aladim, meu filho”. Criado pela avó como eu, é um dos caras que mais conhece MPB. E quando falo MPB não tô falando apenas de Chico e Caetano, mas de Jard’s Macalé e Sérgio Sampaio, só pra início de conversa. Ele me nocauteou uma vez (merecidamente), e isso serviu pelo menos pra mostrar o quanto a gente gosta um do outro. Temos em comum a ocorrência esporádica do Fenômeno da Chuva Durante a Noite Inteira quando estamos bebendo. Foi assim uma vez no Mustang. Choveu a noite inteira. Tanto que alagou o bar até o teto e o Bob Esponja apareceu nadando e pagou umas cervejas pra gente. Na manhã seguinte, quando a água baixou, tinha um surubim em cima da nossa mesa. Sério. O Renan está de prova e não nos deixa mentir. Enfim o Alain é meu brother demais, demais, demais. Como diria a Márcia Goldschmidt: "Mexeu com ele, mexeu comigo".

sábado, 16 de abril de 2011

FIGURAS DO MEU ÁLBUM (I)

CLAUDECI ( VULGO "CLAUDETE", "CLAUS")

Estou publicando no Facebook um álbum de fotografias com o título deste post e o subtítulo Minhas singelas impressões sobre uma pá de gente que gosto. Já publiquei três figuras por lá. Aos poucos as republicarei por aqui.

Conheci o Claudeci quando ele ainda era garçom do Bar do Maciel. Ele apareceu bêbado (na época andava bêbado) e fumando (na época fumava) no Bar do Paulista. Disse que estava doido para ligar pruma menina que tinha dado mole pra ele, mas não tinha crédito no celular. Dias depois fui atendido por ele no Bar do Maciel, que dias depois passou a chamar-se Bar do Claudeci. (Corre até hoje o boato de que o Maciel foi vítima de um “tombo”.) E que bar. Logo de prima o Claudeci mandou pintar na parede a frase “não bata na cinuca” e  passou a oferecer uma picanha na chapa com mais cebola do que carne, sempre acompanhada de uma “muchêa” de farinha de puba fedorenta. Falando em comida, o Claudeci come diretamente na panela, assim como os porcos comem diretamente no pneu. O time do coração é o Vasco, o apelido é Claudete. É uma ótima pessoa o Claudeci, até porque só fala mal dos outros pelas costas. O tempo passou e o bar mudou de endereço. E também de dono: não é mais Bar do Claudeci, agora é Bar da Poly. (Corre até hoje o boato de que o Claudeci foi vítima de um “tombo”.) Entre verdades e mentiras, é certo que o Claudeci largou a esposa para viver um grande amor, mas o mais certo ainda é que hoje ele trabalha como motorista de ônibus na linha Imperatriz/Ribeirãozinho.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

I HATE TV

Sou da geração pré-donwload, a geração fita Basf. E lógico: da Geração TV. Lembro que no Pasquim 21 havia uma coluna chamada Eu Odeio TV. Eu sempre a lia. A coluna era especializada em TV. Numa época em que as televisões já eram coloridas, a Semp lá de casa continuava preto e banco. Quando morávamos em Campestre, no início dos 90, alguns citadinos burlavam essa imposição socio-econômica acoplando uma tela de vidro com as cores do arco-íris sobre os velhos aparelhos. Era a engenhosa forma para colorir a programação. E os crediários a vendiam em até dez vezes com juros.

Nunca arrotei a célebre frase anônima Eu não assisto TV. Eu sempre assisti TV, aliás desde a tenra infância, quando, extasiado pela primeira vez em que a vi, eu só de cueca bebi metade de um litro de querosene que minha mãe deixara vacilando no pé da estante. Se estivesse vivo, ainda hoje meu pai diria que a culpa foi da TV, essa alienadora de mentes. Não, a culpa foi minha. E como estava gostoso aquele querosene. Fez-me ver a nave da Xuxa com outros olhos, outros sentidos, outras portas da percepção - embora depois eu tenha acordado num hospital em Teresina, Piauí, internado para desintoxicação.

Sou um órfão da Rede Manchete. Bati muita punhêta assistindo aos bailes de carnaval do Clube Escala, no Rio, madrugada adentro, com a TV ligada baixinho para não acordar meus pais. Devo a vida à televisão, ela que uma vez me livrou da morte. No dia em que o Homem Lombriga seria enterrado vivo no espetáculo do circo vizinho à nossa casa (o Circo do México, um circo fuleiro que não era do México), eu fiquei na dúvida se iria assistir ao fantástico enterro ou se ficava em casa assistindo a um dos episódios do Star Wars na Globo. Optei, no fim, pelo filme. No dia seguinte fiquei sabendo que uma arquibancada do circo havia caído e matado um menino da minha idade.

A televisão da casa de minha avó sofria. Durante as férias, era a oportunidade que eu tinha para assistir à novela Carrossel em cores. Deitava no sofá e aproveitava que minha avó estava na cozinha e ficava mudando de canal com o dedão do pé (também sou da geração pré-controle remoto). A de casa também esquentava: minha mãe tinha que me ameaçar - Menino, vou comprar uma caixa de geladinho pra tu vender na rua! -, caso contrário eu não abandonava a telinha para estudar a Tabuada e o Abc. Um dia levei umas bordoadas do meu pai quando ele me mandou pegar cigarro para ele na gaveta da máquina de costura e eu fiquei absorto assistindo ao Fofão. A TV foi minha primeira droga. E pode ser a última. Ou não é factível que um dia exista TV de LSD?

quarta-feira, 30 de março de 2011

RAYMOND CARVER

DOIS POEMAS


FELICIDADE

Tão cedo que ainda é quase noite lá fora.
Estou perto da janela com o café
e tudo aquilo que sempre a essa hora
nos passa pela mente.

Quando vejo o garoto e seu amigo
subindo a rua
para entregar o jornal.

Eles usam bonés e agasalhos,
e um deles traz uma mochila nas costas.
Estão tão felizes
que nem sequer conversam, os garotos.

Acho que, se pudessem, estariam até
de braços dados.
É de manhã bem cedo
e os dois caminham lado a lado.

Lentamente, eles vêm vindo.
O céu começa a clarear,
embora a lua ainda paire sobre a água.

Tanta beleza que por um instante
a morte e a ambição, mesmo o amor,
não se intrometem nisso.

Felicidade. Ela vem
inesperadamente. E vai além, na verdade,
de qualquer discurso sonolento.


DIRIGINDO E BEBENDO

Já é agosto e eu não
leio um livro há seis meses
a não ser por um troço chamado A Retirada de Moscou
de Caulaincourt.
Ainda assim, estou feliz
andando de carro com meu irmão
e bebendo um pint de Old Crow.
Não estamos indo a lugar nenhum,
só estamos indo.
Se eu fechasse os olhos por um minuto
estaria perdido, contudo
eu poderia facilmente deitar e dormir pra sempre
na beira desta estrada.
Meu irmão me cutuca.
Para que algo aconteça, está por um triz.

Tradução: Cide Piquet.

terça-feira, 29 de março de 2011

CINEMA NO TEATRO

PROGRAMAÇÃO DE ABRIL
 
Dia 04 - Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), de Bruno Barreto.
Dia 11 - O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte.
Dia 18 - Pixote, a Lei do Mais Fraco (1981), de Hector Babenco.
Dia 25 - Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha.

Exibição sempre às segundas, no Teatro Ferreira Gullar.

Mais detalhes aqui.

quinta-feira, 24 de março de 2011

MARCELO MONTENEGRO

MELODRAMA BLUES

Algumas pessoas acabam se encontrando. E é como se conhecessem desde sempre. Algumas pessoas desistiram de botar suas fichas na máquina e choram assistindo People and Arts de madrugada. E cultivam milhões de novidades pra dizer umas às outras. Algumas pessoas "jogaram fora o guardanapo pra comer com a mão". Fazer o quê. Algumas pessoas decidiram se sofisticar. E produzem coisas importantes. E detestam o trabalho solo do Frejat. Algumas pessoas espremem o cérebro e se divertem. E bolam apelidos engraçados pras pessoas. E nutrem idéias mirabolantes. E seus sonhos grisalhos. E seus blogs sangrando. Algumas pessoas são capazes de elogios desconcertantes. E nunca esquecem o final da piada. E citam cenas inteiras de seus filmes ruins preferidos. E racham garrafas de conhaque só pra assistir ao show dos Bêbados Habilidosos. Que resolveram tocar suas ilíadas vagabundas quase clandestinamente. Assim. Apenas pra algumas pessoas. Que riem de si mesmas como se rezassem. Que insistem em recolher as peças só pra espalhá-las de novo. Algumas pessoas que construíram isso como operárias do próprio privilégio. Que custa caro. As coisas que importam. E as que não se explicam. Algumas pessoas se debatem pra não descuidar da defesa mas desde há muito descobriram que só sabem jogar no ataque. E permanecem saudavelmente inquietas mesmo se o time estiver ganhando. Algumas pessoas se emocionam. E deixam o melhor do seu abandono em cada abraço que fica. Algumas pessoas realmente direcionaram suas vidas. E subiram nos ombros dos seus ídolos e dos seus medos pra poder enxergar depois do muro. Só pra ver aonde a bola caiu. E continuar brincando. Desfrutar desse indescritível prazer que é chutá-la mais longe

In: poema do livro Orfanato Portátil (2003).

sexta-feira, 4 de março de 2011

PASSEIO DIURNO

Olhou a caveira acoplada no capô do Gol GT 2.0 e sorriu. Na porta da velha geladeira, fixado por dois cachinhos de uva, deixou o recado escrito com o giz de cêra vermelho da filha: "Amor, fui passear mas não demoro." Quando abriu o portão, a cachorrinha Sofia, que passara a noite fora, entrou latindo e correndo feito louca pela garagem. A cachorrinha Sofia quis entrar no Gol GT 2.0 preto, mas ele deu-lhe um sopapo que a fez deslizar rodopiando pela cerâmica recém encerada até chocar-se contra o vaso de uma planta chamada Cachorro Pelado. A cachorrinha Sofia ficou latindo detrás do Cachorro Pelado enquanto o Gol preto ganhava a rua deixando uma fumaça azulada para trás.

Estacionou no Mateus Supermercados. Apesar do calor, usava uma jaqueta preta e uma camiseta branca por baixo. Entrou pela seção de bebidas. Dois meses sem beber, desde o domingo em que esmurrara o sogro perto da churrasqueira, no quintal de casa, por ocasião do dia dos pais. Procurou aqueles uísques pequenos, de bolso. Achou, mas no final optou por um litro de Ypióca Gold. Passou na seção de Cama, Mesa e Banho e ficou um tempo cheirando os sabonetes. Cheirar sabonetes em prateleiras de supermercados era uma mania sua de infância. Phebo, Palmolive, Senador. Na saída do supermercado, acendeu um cigarro, olhou a caveira novamente e sorriu.

Desceu pela Avenida Getúlio Vargas, sentido Avenida Beira Rio. Estacionou no antigo Cais do Porto. Sorriu ao olhar para a caveira impassível sobre o capô. Abriu o litro de Ypióca Gold e bebeu um gole grande - um gole de três segundos, que fez a velhar garganta trabalhar célere, aos coices, como se tivesse acabado de sair de uma esperada revisão. Pôs o litro no teto do Gol e urinou na junção do muro das peixarias com o chão do cais. Quente, muito quente. De imediato um cheiro forte de terra molhada e peixe morto entrou pelas suas narinas. Bebeu outro gole e seguiu rumo ao banco do S. Hippies fumavam maconha numa barraquinha às margens do rio Tocantins. Um deles o reconheceu. Ofereceu um trampo. Não aceitou, mas transou ervas com o hippie sorridente. Outro gole. Duas adolescentes estavam sentadas no banco do S. Uma de cabelo azul e outra de cabelo vermelho. Frente a frente, pareciam conversar. Ao cruzá-las, viu que as duas se beijavam lascivamente. Observou que tinham piercing na língua. Nem deram por ele.

Voltou já um pouco tonto para o carro. Deu a partida. Piçarra e poeira ficaram para trás após uma arrancada brusca e bêbada. No bar Coco Verde, na curva do último lago, o dono do estabelecimento o atendeu com um cigarro na boca e uma flanela suja no ombro. Pediu uma cerveja e sentou-se numa mesa próxima à beira do rio, debaixo de uma sombra. Eram quatro da tarde. Mais abaixo, perto das canoas, abrigados numa touceira, três homens fumavam crack numa lata de cerveja improvisada como cachimbo. O cheiro de detergente queimado voou elétrico pelo ar. Algo se enroscou na sua canela. Uma página do jornal O Progresso. Com o pé, desenrolou a página, pisou em cima, leu a manchete: Mulher é encontrada morta e sem roupa no acesso da ponte Dom Felipe Gregory. Não gostou do título. Pensou que Nua e crua resumiria melhor o fato. Faltava mais poesia nas redações dos jornais.

As três cervejas o deixaram um pouco mais tonto. Mesmo assim, com o Gol em movimento, deu mais dois grandes goles na Ypióca Gold. Parou na frente de casa. Na calçada, ao vê-lo, a cachorrinha Sofia balançou o rabo. Dessa vez a deixou entrar. Depois de abandoná-la na estrada de Davinópolis, foi para a linha do trem e fumou um cigarro de maconha. Deu outro gole na Ypióca e deitou sobre os dormentes. Respirou fundo de papo pra cima. O coração batia forte, acelerando. Tentou se levantar, a cabeça pesou. Olhou para o lado e viu o carro preto estacionado na ribanceira. A caveira parecia sorrir para ele. No céu, um grupo de urubus voava em espiral. Dormiu um pouco.

No sonho, ele e a esposa haviam se convertido ao evangelho na Igreja da Madeira do Senhor dos Céus. As graças não demoraram a aparecer: ele parou de beber, ela parou de fumar. Mas a prosperidade financeira, afirmara o pastor Carlos, demoraria um pouquinho mais. Uma tarde o pastor os chamou e disse, com os olhos lacrimosos: "Abençoados, li na bíblia, em Oseias, capítulo três, algo determinante para a vossa prosperidade. Mas é necessário certo sacrifício, irmã. A senhora tem que ter relação sexual comigo. É o que diz o versículo, irmão Ricardo: 'Vai outra vez, ama uma mulher, amada de seu amigo, e adultera'. Tenho que adulterar a sua esposa, irmão, tenho que fodê-la". O pastor fodeu Simone durante quatro meses. Como a prosperidade não chegava, Ricardo resolveu ler o capítulo três de Oseias e percebeu que o pastor os havia os enganado. Não era adultera, como leu o pastor, mas adúltera. O capítulo falava de perdão a uma mulher adúltera, não em adulterar a mulher de um amigo.

Acordou com o silvo agudo do trem da Vale se aproximando. Começava a chuviscar. A cabeça doía. Recostou-se na ribanceira e ficou observando a locomotiva passar. Na volta para casa, um interesse bovino pela mulher aflorou. Seu pênis estava ereto, pressionando o zíper da calça. Era preciso foder Simone. Estacionou o Gol GT 2.0 preto na garagem, tirou a jaqueta, sorriu para a caveira. Ninguém em casa. Na geladeira, um recado da esposa. "Bem, eu e a Carlinha fomos até a casa da mamãe. A comidinha tá no fogão. Te amo". E mais abaixo, em forma de P.S.: "A Sofia ainda não apareceu". Sentou-se na frente do televisor. O apresentador almofadinha do JM TV noticiava o achado de  outro corpo nu de mulher. Foi quando algo se mexeu na garagem. Meio trôpego, como um bezerro recém nascido, o Cachorro Pelado saiu do vaso e veio na sua direção. Levou umas três quedas, até que enfim pôs-se à sua frente balançando o rabinho verde. Ricardo levantou-se e desferiu um chupe potente contra o estranho animal. O Cachorro Pelado se estatelou contra a parede. Depois agonizou, bufando, no chão. E das suas perninhas quebradas minou um líquido branco e viscoso.

THE ARRIVAL





















HQ muda de Shaun Than.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

DEAD KENNEDYS

1968 - Robert Francis Kennedy, irmão do presidente do Estados Unidos, é assassinado em Los Angeles, California.

1963 - John Fitzgerald Kennedy, presidente dos Estados Unidos, é assassinado em Dallas, Texas.

1933 - Jhon Harold Kennedy, tio do futuro presidente dos Estados Unidos, é assassinado em São Luís, Maranhão.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

BÊBADOS HABILIDOSOS

BLUES DA SOLIDÃO



In: faixa do disco ENVELHECIDO DOZE ANOS (2004).

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

OS PRISIONEIROS

"Livre e confiante cidadão da Terra", diz Kafka, "eis que está preso a uma corrente longa o bastante para lhe proporcionar a liberdade sobre todo o espaço terrestre". Conquanto sentindo-se livres, uma vez que desapercebidos da enferrujada corrente arrastando-se atrás de si, os familiares e amigos dos presos chegam cedo e trazem Coca-Cola, banana, bolo, maços de cigarro, arroz com abóbora e chambari em vasilhas de plástico verde transparente. Hoje é sábado, o dia de visita aos presos.

Chegam os visitantes, tão condenados quanto os visitados, e se aglomeram na porta da delegacia. Mães, pais, tios, namoradas, sobrinhos, amigos. Muitos são tarimbados na arte de visitar presos de justiça. Outros são iniciantes, os curiosos do cárcere. E há aqueles que não vêm propriamente para a visita. Apenas se postam na calçada afirmando que jamais a cadeia os conhecerá, cada um com sua carga de nojo, segurança, envergadura moral uniforme. Se orgulham por serem os cidadãos de bem, sem saber que muitos homicidas também já tiveram uma família amável e um emprego fixo.

Eu, como Bukowski, tenho medo do homem mediano, o cidadão de bem. Tenho medo dessas donas de casa que com uma faca extremamente amolada cortam cebola para o almoço religiosamente às onze e meia. Não me agradam essas crianças inteligentes demais, esses pastores de voz mansa, essas famílias de comensais que rezam nas mesas de luxuosas churrascarias agradecendo a Deus por poderem pagar vinte e cinco reais num rodízio de carnes. Ah, e que carnes, deliciosas carnes, gordurosas carnes. "O que existe de falsidade, ódio, violência e absurdo nas pessoas medianas", diz Bukowski, "é suficiente para abastecer qualquer exército em qualquer dia".

"Controle de solo para Major Tom. Controle de solo para Majo Tom..." Tento mais uma vez a comunicação via rádio, mas olho o relógio e são quinze horas - a hora de abrir os portões da masmorra moderna. Destranco os cadeados, as grades, o som angustiante de metal contra metal assustando os pardais. O presos - poucos: seis - aguardam na área reservada para o banho de sol. Um deles tem um violão e entoa uma triste música gospel, que todos acompanham, emocionados. Quando chegam no verso Como Zaquel, eu quero subir - que eu substituo maliciosamente por quero fugir -, cantam tão alto e tão em transe que temo que alguns deles enfartem, principalmente um preso mais idoso. Escuto o barulho do rádio. É o Major Tom. Entrecortada pela música evangélica, sua voz grave sentencia: "Aqui é o Major Tom para o Controle de Solo. O planeta Terra é azul e não há nada que eu possa fazer..."

Há sempre um preso incomum no cárcere. Talvez ele leia Vigiar e Punir esperando o tempo passar. Talvez ele saiba de cor e salteado todo o texto de A Apologia de Sócrates. Talvez um dia ele me chame até a grade e me diga que eu não sou mais livre do que ele, argumentando que ele, livre para decidir sobre sua liberdade, decidiu estar preso. Ele, que transgrediu determinados códigos morais erigidos ao longo de séculos, talvez um dia me pergunte, para o meu espanto: "Como está a prisão aí fora?" Há sempre um preso incomum que sabe que, em oposição ao cidadão normal, o delinquente é definido primeiro como louco, depois como meliante, malvado, e finalmente como anormal. Talvez ele seja decapitado, o preso incomum.

Às dezessete horas os visitantes vão embora. Fica o barulho de suas correntes na saída e a impressão de que um deles não voltará na visita seguinte. Este fatalmente um dia será preso por atropelar uma criança na descida de uma ladeira de um bairro residencial com uma caçamba sem freio carregada de areia molhada. Algemado, espancado, argumentará que além da falta de freio, os raios solares que reluziram no cabelo dourado do menino o ofuscaram. De nada adiantará: será condenado. Na cela, se assustará com a primeira lufada de vento que lamber seu rosto. Vai chorar durante a primeira semana. No dia da visita, não será visitado. Vai tremer ao ouvir o cadeado se fechando forte pela primeira vez. O baque duro do ferrolho trancará sua garganta. Como uma mônada que é, seu coração baterá forte, uma tontura o derrubará, o sangue lhe subirá quente à cabeça e tudo ao redor vai escurecer como num eclipse repentino.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

BANANA BOAT



In: Comercial Banana Boat. Ou, como lembra aquele "textinho mela cueca" do Pedro Bial, use filtro solar..."

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A INESPERADA MORTE DE TIFFANY

OU UMA CARTA A MAMÃE


Querida mamãe,

Minha namorada inflável morreu na última quarta-feira. Não suportou a insolação das três da tarde e estourou à beira da piscina. Eu estava na cozinha preparando uma soda limonada quando escutei o barulho da explosão - um barulho seco, de mórbida plasticidade. Corri para o quintal pressentindo o pior e quando lá cheguei vi o que antes era beleza e esplendor secando e se transformando numa pele dura e cheia de fissuras, a mão antes robusta da minha querida Tiffany reduzindo-se a um resto de plástico que já não segurava com firmeza a taça de Martini que repousava na cadeira de sol. Os dedos, principalmente o Maior de Todos e o Fura Bolo, mais pareciam os de uma caveira. À medida que esvaziava, o rosto de Tifanny materializava mais e mais o pavor daquela tela do Edvard Munch. Pernas e braços secos em questão de segundos. Ventre esquálido. Um filme de terror, mamãe.

Não nego que negligenciei as recomendações do fabricante. As instruções eram bem claras: não expor ao sol após as dez da manhã e antes das quatro da tarde; não derrubar brasa de cigarro sobre o corpo; aparar as unhas; não manusear objetos metálicos (faca, tesoura, utensílios de cozinha) sem o devido cuidado; limpar com água e sabão após as afinidades eletivas e afetivas; não esquecer as juras de amor; perguntar "como foi seu dia?" ao chegar do trabalho; beijo na testa antes de dormir; e principalmente usar o Superprotetor Solar Antiexplosão de Namoradas Infláveis. Ações simples que poderiam poupar a vida da minha princesa. "Pequenos gestos, grandes ações", como diria o presidente da Associação Nacional dos Namorados de Namoradas Infláveis. Mas agora é tarde, mamãe. O caldo já derramou.

No dia seguinte a polícia bateu à minha porta. Um delegado e dois investigadores me fizeram diversas perguntas constrangedoras - "Onde o senhor estava, exatamente, quando ela morreu?". Conversaram reservadamente com alguns vizinhos, fizeram anotações, colheram minhas digitais, chamaram um perito (um perito, mamãe!) e chegaram até a olhar-me de esguelha enquanto cochichavam entre si. De certo me têm como suspeito de homicídio. Nada anormal, se levarmos em consideração a quantidade de namoradas infláveis que foram assassinadas por seus parceiros neste final de ano. "O senhor possui alguma arma de fogo na sua residência?", perguntou-me o investigador de olhos cor de pêssego. Nessa hora quase Tiffany ressuscitava para brandir aos policiais que "Não, nós não temos arma nenhuma em nossa casa!". "Nenhum um 38?", insistiu o outro investigador, um negro de repugnante cavanhaque australiano. "Não, senhor", tornei a negar. "Chega. Vamos", disse o delegado. E se foram, enquanto os removedores do IML recolhiam o corpo de Tiffany e eu assuava o nariz de tanto chorar.

Felizmente o laudo do Instituto Médico Legal dissipou qualquer suspeita que recaía sobre mim. "A morte foi classificada como naturalíssima", disse-me por telefone advogado Bolinha, após uma breve audiência com os médicos legistas. O Bolinha é realmente um grande operador do direito. Foi ele quem me alertou, logo após o fatídico, sobre a necessidade de puxar o corpo de Tiffany para a sombra e lambuzá-la toda com o Superprotetor Solar Antiexplosão. Assim, assegurou, a polícia não poderia me acusar de homicídio culposo na modalidade morte solar. Mas não adianta, mamãe. Mesmo livre eu já estou condenado. O caldo já derramou. Não há sentença pior do que viver sem Tiffany: choro todos os dias à beira da piscina, procuro-a em vão pelos cômodos da casa. Jamais assimilarei (não ouso sequer pronunciar a palavra aceitar) a perda de Tiffany. Não sei se viverei muito tempo sem os seus carinhos. Receio morrer de banzo.

"É amor demais, é coisa de Deus" - diz a canção que ouço sem parar no MP3 depois que o meu docinho morreu. Difícil não lembrar da sua face angelical, seus modos de menina moça que enchiam a casa de suave beleza. Era a mulher da minha vida, digo, a namoradinha inflável da minha existência. Nunca reclamou de nada, nem quando eu cheguei bêbado tarde da noite com a camisa cheia de manchas de batom de uma prostituta inflável. Nunca me levantou a palavra, nunca me cobrou juras de amor, jamais negou fogo na cama. Pensávamos em casar, ter três filhinhos infláveis para levar ao parque nos domingos. Quem sabe se, com o tempo, a ciência não desenvolve um método para ressuscitar namoradas infláveis? Em Berkeley as pesquisas estão avançadas. Na geladeira ainda guardo os dois copos de soda limonada que eu havia preparado no momento da sua morte, na esperança inútil - porém romântica - de que um dia ela apareça para beber comigo

P.S.: Sabe, mamãe, eu cheguei a suspeitar do meu vizinho quando a vi morta. Ele poderia muito bem ter jogado por cima do muro uma bituca de cigarro na minha amada. Inveja, mamãe. Por que não? Daí o estouro repentino. Pensei seriamente nessa possibilidade. Achei-a verossímil, factível. Mas ontem, depois que sua namorada inflável também faleceu em circunstâncias parecidas, rechacei tal possibilidade. Aliás senti pena ao vê-lo na calçada, desolado, tentando explicar para o investigador de repugnante cavanhaque australiano a perda da sua Shirley. Ele está sofrendo também, mamãe. Sofrendo muito. Seus olhos andam constantemente vermelhos. Emagreceu. Com certeza deve ter perdido o apetite também. Dá dó. Sabe, mamãe, acho que vou tentar uma aproximação. Conversar com ele, dividir a dor, pois só assim poderemos superar a tragédia comum. Se nada aplacar nosso sofrimento, o convidarei para formar uma dupla de Sertanejo Universitário. Apolíneo e Apolônio, que tal o nome? Ainda não escrevi nenhuma música, mas já tenho em mente o título do disco: Amores Infláveis - A vida sem você é um vazio.

Beijos do seu querido filho.