sábado, 28 de dezembro de 2013

RODÍZIO

Ela está alegre, falante e, a julgar pelo tanto de arroz e feijão que põe no prato, também muito faminta.

Ela come sofregamente, o barulho metálico de seus talheres é algo elétrico.

"Mas que fome doida", ele pensa com um sorriso no canto da boca, e olha admirado a nova namorada mastigar, enquanto espera paciente o início do rodízio.


Ele não sabe, mas o cara que corta as carnes na churrascaria, o cara triste que nesse momento traz um coração sangrando no espeto, esse cara é o ex.

COBAIAS DA MINHA SOLIDÃO

Tirar onda calado. Da janela do ônibus, dar tchal pra desconhecida que varre a varanda da casinha no povoado Pindaré. Imitar disfarçadamente a mulher que bebe suco de cajá ao meu lado no balcão da padaria. Rir - depois do acontecido, já manobrando a moto na porta de casa - da vendedora do Mercadinho que perguntou se o rosto do Angus Young estampado na minha camisa era uma cabeça de jumento. Desnortear sobrinho chamando-o de tio.

domingo, 17 de novembro de 2013

ENTRE ALGUNS ALHOS E UNS TANTOS BUGALHOS

ou
Alguns esclarecimentos desnecessários para aqueles que me conhecem e alguns esclarecimentos totalmente inúteis para aqueles que não me conhecem e falam, insolitamente, como se me conhecessem ou algo parecido.

De repente, não mais do que de repente, como diria o poeta, eu que pensava já ter pendurado as minhas surradas chuteiras quanto às questões culturais artísticas da minha cidade, me vejo, no rebuliço de um mundo “internético” (para o qual, dada a minha confessa inabilidade para com o mundo tecnológico, me sinto um verdadeiro analfabeto, portanto, nada “doutoresco” como alguns desavisados, por não me conhecerem, se sentiram violentados pelo simples fato do título, o que, no mínimo, me causou estranheza. A estes, digo mansamente, não tenham medo: um título é um título e ele não é nenhuma víbora a trucidar alguém, e muito menos, que eu saiba,  não eleva ninguém às alturas. É tanto, que continuo ainda encantado pelas modorrentas miudezas do meu cotidiano). Porém, sei lá pelas quantas, diversas pessoas falaram que eu estava sendo motivo de um embate no Facebook.  Como sempre estive ausente das ditas “redes sociais” (não afirmo isto como mérito, mas além de um alimentado “analfabetismo”, a falta de paciência tem sido uma das minhas virtudes e, por consequência,  defeito).

De início, ao saber do fato, despontava, sem nenhuma petulância, a senil e eterna resposta: “ah, é!”.

Pois é, mas o que parecia ser um instante/algo a ser descartado, na mesma velocidade como o que foi feito, terminou por ter algumas sobrevidas, e assim, ao saber que o nível do embate/discussão rasteiramente se instalou nas reentrâncias corporais, sem ter que recorrer ao explícito do mundo,  citado, musicalmente, por Caetano Veloso, resolvi ler as tão “curtidas” páginas.

De antemão afirmo, não me espantei, principalmente com algumas afirmações grosseiras. (E talvez este seja o verdadeiro motivo que até hoje não faça parte da “rede”.) Ao ler, sinceramente, não sabia se ria da desgraça ou chorava diante das torpezas humanas.

Na dúvida, resolvi, que em respeito a alguns e outros tantos intolerantes, fazer alguns esclarecimentos que, de antemão, sei que de nada servirão.

Mas, vamos lá...

Uma destrambelha pérola desinformativa:

Alguém disse que sou professor da UFMA e que assistiu uma palestra e eu só falava do  doutorado que fiz na Europa. Este dado na minha biografia eu desconhecia: Não sou professor da UFMA, nunca fiz uma palestra lá, tão-somente, com muito prazer, um minicurso sobre cinema e  nunca fui à Europa, portanto, até hoje nunca me autoproclamei “Doutor” e muito menos “Doutor europeizado”, e menos ainda, por enquanto, penso eu, não tenho a capacidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo, isto é, não era eu o jurado de um concurso de arraiá em 2010, pois eu estava no Rio de Janeiro (UFRJ), fazendo o dito cujo doutorado. Já me acusaram de muitas coisas, mas onipresença, não nego, é completamente inusitada.  Acho que devem ser tonterias e vanices da alma humana.

Pequeno manifesto para algum desavisado que ainda não saiba:

Nunca fiz, nem montei qualquer espetáculo que se aproximasse do Teatro do Absurdo, e nunca subi ao palco, pois não sou ator, nunca pretendi e, portanto, nunca serei. O ‘adjetivesco’ da inveja não habita o meu ser.

Quanto à questão do Grupo Okazajo, antes de mais nada, é necessário alguns miúdos esclarecimentos:

1. Não sou da turma, não vi e odeio (e respeito a quem assim se posiciona).

2. Meu primeiro contato foi exatamente quando o grupo surgiu. Como fazia parte da “turma” envolvida nas questões culturais da cidade, evidente que estreitei, dentro do possível, contatos. NUNCA vi, participei ou soube que ao Grupo Okazajo foi negado acesso ao Ferreirinha.

3. NUNCA vi, e ninguém da “turma”, o Grupo Okazajo como adversário ou coisa parecida (para os desavisados, é fundamental afirmar que sempre éramos tão poucos (como até hoje), que os tão poucos eram sempre bem vindos).


4. Como na época era Presidente da FCI, procurei o Rogério, por diversas vezes, e disse que, como eles estavam começando, era interessante que se cercassem de conhecimentos, outras experiências, e se o grupo quisesse buscaríamos todo o tipo de apoio, principalmente trazer “fazedores” teatrais para dar oficinas, etc. Se a proposta não fecundou, foi uma questão de escolha, o que sempre respeitei.


Hoje, com serenidade, não me envergonho de dizer que todas as batalhas, as infindáveis lutas pelas questões artísticas de nossa cidade, das quais participei, a partir dos anos 80 do século passado, com dezenas de companheiros (alguns vencidos pelo tempo, outros ainda a saboreá-lo), valeram a pena. Vencemos algumas, fomos vencidos em dezenas, mas participamos e sei o quanto foi e é importante. Nem por isso me acho “dono”, ou um “ser supremo” ou coisa parecida. Fiz, como tantos outros, pelo PRAZER de fazer e isto bastava e até hoje basta.

Ao pendurar minhas mal ajambradas chuteiras artísticas, o fiz não por cansaço, desilusão, inveja ou coisa parecida. Fiz por que senti que não tinha mais nada a contribuir artisticamente para com a cidade que adotei de coração e alma. E sou daqueles que se  você não tem nada para acrescentar, o melhor é pedir licença e sair.

Porém sair, não é deixar de existir, de continuar pelejas outras. Meu campo de ação, hoje, é o meu ofício: ser professor, e isto me basta enquanto prazer tiver e a responsabilidade de sê-lo persistir.

Antes de ser profissionalmente o que sou e o que já fui, sem nenhum pudor me declaro como alguém que é serenamente um aprendiz, porém,  não consegue sentar à beira do caminho, ou como diria com maestria Expedito, remontando o dizer de Mariátegui, eu sou daqueles que acreditam quedevemos ser palco na vida, e não plateia”.

Quanto a tantos impropérios...

Primeiramente, é necessário reafirmar que as circunstâncias de uma sala de aula não conseguem ser reproduzidas em um texto, pois, o produzido sobre o acontecido, sempre deixa lacunas, destrói a ambiência do quê, o porquê e como foi dito. Mas, mesmo assim, vale refletir sobre algumas questões que estão sendo focos de discussões/embates ou impropérios:

Todas as vezes que o Grupo Okazajo é citado nas minhas aulas, ele é utilizado muito mais como um marca de um fazer “teatral” que, como uma invasão bárbara, assolou todo o nosso país, do que especificamente o Grupo e seus membros. Cito o nome, como poderia citar tantos outros, porém, estou em Imperatriz e a referência para muitos é o Okazajo e seus afins, até para que haja uma compreensão do que estamos a falar/discutir na sala.

Aliás, mesmo se não tivesse estes motivos/motivações, isso não me impediria (e nunca me impedirá) de na sala de aula ou em qualquer outro lugar, falar sobre questões que acho pertinentes a serem discutidas/questionadas.

Não vou aqui desfilar um rosário de teorias sobre o que é a arte e as suas tantas querelas (se a  alguém se interessar, não me furto, aliás, terei o maior prazer de conversar sobre), aqui, por necessidade, em poucas palavras, tentarei explicitar o que há muito tempo vem me incomodando nos insensatos dizeres “pós-modernosos” (e não quanto à questão da pós-modernidade, como bem citou Mayara).

Inicialmente, posso discutir sobres muitos fazeres humanos, inclusive o artístico, mas não aceito, de antemão, discutir números, quanto a leitores/ouvintes/espectadores, para referencializar ou referendar o que seja ou não uma obra artística. Acho que o argumento vale muito mais para a economia, mercado ou coisas afins. Segundo, não sou o dono da verdade, muito pelo contrário, pois me interessa muito mais as dúvidas, os questionamentos, as perguntas. Aliás, há muito acredito que as perguntas são muito mais interessantes que as respostas.

Sendo mais específico quanto aos meus questionamentos sobre um fazer “teatral” que se diz válido, quem sou eu para determinar o contrário, cada um faça o que bem entender, porém não exija o silêncio medíocre e/ou os aplausos retumbantes. Por isso, não posso, nunca, me furtar de perguntar:

O que fazer diante de um “espetáculo” que não só é conivente com os mais indignos preconceitos, mas os alimenta, saboreia em risos as suas torpezas? Que “arte” é esta que além de alimentar o medíocre senso comum, serve como arma contra aqueles que, ao saírem do palco, serão achincalhados/violentados como seres humanos? Isto é “comédia” ou uma autoproclamação à insensatez humana? É o riso ou uma orgiástica necessidade de, pelo menos, agradar para depois ser trucidado?

O que é isso? Os números não me servem como resposta.

Subir em um palco é o suficiente para dizer que está fazendo teatro? Escrever um livro impõe, ao fazedor, o direito de se autoproclamar escritor? Bater uma foto ou fazer um vídeo, necessariamente, para quem o faz, possibilita a se afirmar como  fotógrafo ou cineasta? O “autor-ator-fotógrafo-cineasta etc.” até tem o direito de fazê-lo, mas exigir dos outros que também o faça é, no mínimo, exigir demais (para não dizer outra coisa). Sempre digo, e continuo a afirmar, um dos nossos problemas, na atualidade, é que cada vez mais as pessoas só querem ser “artistas” e não, também, leitores/espectadores/ouvintes.

Só sei que nesta balança há muito que “não vale quanto pesa” (referência ao filme de Sergio Bianchi).

Não tenho dúvida que a conquista aos meios de produção, por parte dos artistas, possibilitou uma quebra de paradigmas e tutelas. Hoje, escrever um livro, fazer um filme-vídeo, gravar um cd-dvd, etc. é,  infinitamente, mais fácil. Porém, como contraponto, os “artistas” facilmente caíram na armadilha narcísica de, antes de qualquer coisa, se autonomearem, como se o meio de produção chancelasse a sua condição de ser. 

É exigir demais de quem assiste, ouve ou ler.

Que “fazer artístico” é este que qualquer senão para com ele se torna algo “contra a liberdade de expressão”? Que “fazer artístico” é este que só sabe conviver com os aplausos? Assim sendo, só resta perguntar: Isto é um "fazer artístico"?

Sei o quão é difícil o fazer artístico em nosso país. Sei, e bem sei, o quão inglório é persistir no fazer artístico em nossa cidade.

Como artistas, espectadores, leitores, ouvintes, todos aqueles que se interessam pela expressão artística de nossa cidade, de alguma forma, se tornam quase, inevitavelmente, em seres “esquizofrênicos”. Repartidos em sempre ser solidários com todos aqueles que têm a coragem de se expressar (artisticamente ou não), e, ao mesmo tempo, discordantes diante de diversos resultados vistos/lidos/ouvidos ou indignado diante da insana obrigação de aplausos retumbantes, ou silêncios canalhas.  

Sou, descaradamente, desta linhagem. Porém, não aceito mais desempenhar o papel da obrigação ou do silêncio. Talvez assim, eu possa estar contribuindo para algum fazer da minha cidade.

E de repente, não tão de repente, tudo isto me fez perceber que, pelo menos parece, eu não pendurei totalmente as chuteiras como pensava.

O que é a vida senão estes sustos da alma.

Gilberto Freire de Santana
16.11.2013




P.S.: Como espectador cinematográfico que sou, aproveito para indicar os seguintes filmes: (1) para quem, de alguma forma, quer saber  uma das  fontes deste fazer teatral atual, e perceber o quão os seus “filhotes” desvirtuarem um fazer, ali sim, transgressor , libertário, assista: Dzi Croquete, de Tatiana Issa e Raphael Alvarez; (2) para quem se interessa em pensar/questionar esse riso frouxo, que se diz “teatral”, que assola o nosso país, veja: O riso dos outros, de Pedro Arantes; e (3) quem quer pensar sobre a questão palco/plateia, o filme Um lugar na plateia, de Danièle Thompson , é uma boa. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O ENTERRO

Ontem enterramos o pai do Oliveira. Eu, o filho, Jhonny e mais três desconhecidos. Dos 98 anos do velho, quantos de sofrimento existencial e terminal? No salão da Casa do Idoso, onde o corpo era velado, uma idosa inquire o preto Oliveira: "Tu não tá chorando não? Se fosse meu pai, eu tava chorando." Tocamos pro cemitério Bom Jesus. Talvez o menor cortejo da história da humanidade. No cidade dos mortos, sinto-me bem. Coveiros a postos, buraco aberto, pousamos o caixão na borda do abismo. Os profissionais da morte perguntam se esperamos mais alguém. Não. Only us. A urna desce. E jogamos, cada um, uma mão cheia de terra na cara do velho. As pás fazem o resto. O baque do barro contra o caixão preocupa e alivia. Os coveiros são céleres, porque há mais defuntos prestes a chegar. Mortos dão trabalho, penso. Mas vivos dão mais trabalho ainda, repenso, ao ver o Pastor Porto andando entre jazigos. Muito alinhado, grudado ao celular, parece o Geraldo Alckmin. Assombração. Vamos embora. No Caminho, Oliveira pergunta ao colega de trabalho onde ele tinha arrumado aquelas mangas deliciosas. "No cemitério", responde o outro, sorrindo. Pondero: antes uma manga adubada com defuntos do que com fezes. Enfim, Bar Gil. Cerveja gelada que desce refrescando. Brindamos e sorrimos ao imaginar que o último coveiro do mundo morrerá e não terá nenhum coveiro para enterrá-lo. Silêncio que segue. Pessoas indo e vindo no crepúsculo. E quando Oliveira me dá um tapinha nas costas, agradecendo a ida ao cemitério, penso como é bom estar vivo.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

CABEÇA, CABEÇAS

No sonho, uma velha sem cabeça conduzia minha cabeça debaixo do braço. Passeava pelas ruas de uma pequena cidade, e ninguém parecia se assustar com a cena. A velha era popular. E falava com a minha boca, segurando minha nuca com as duas mãos estendidas na direção do interlocutor. Passava horas nas praças, nos comércios, nas feiras. No fim da tarde, eu estava exausto de tanto conversar. Eu só queria dormir, mas ela me conduzia debaixo do braço até uma igreja, onde eu era obrigado a rezar um terço de velhos rosários. Só lá pelas dez da noite, íamos pra casa. No fundo do quintal, me obrigava a vê-la banhando de cuia. Punha minha cabeça sobre um cepo de madeira e, despida, após buscar água num recipiente feito de pneus de caminhão, passava as mãos sem sabão nas suas partes flácidas. Ela se acariciava, e isso era horrendo. Ela me fazia mencionar nossa viajem para Canindé, mencionava a promessa, e isso era mais horrendo ainda. Depois, molhava meu rosto, assoando-me o nariz. Por volta da meia-noite, íamos pra cama, onde me obrigava a mamar o conteúdo azedo dos seus seios murchos. Finalmente, deitava-se, colocando minha cabeça sobre seu pescoço, e sonhava que um homem sem cabeça conduzia sua cabeça debaixo do braço. E se agoniava sem conseguir despertar.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

CHUVISCO

O melhor da chuva é a possibilidade de banhar no chuveiro do quintal, se a sua casa, como a minha, tiver um amplo quintal e um chuveiro fixado nele. Então a manha é liga-lo não tão forte, postar-se embaixo e, se estiver chuviscando como chuvisca agora, olhar pra cima, pro céu de chumbo, e perceber que a Máquina do Mundo gira alheia aos nossos interesses. Deixar o jato d'água atritar contra um olho, contra um ombro, contra a nuca. Ensaboar-se vendo cachos de mangas verdes balançando noutro quintal e sorrir de um Bem-te-vi boca de burro que queda ensopado sobre um fio de energia elétrica. Enxaguar-se nesta fronteira do rural com o urbano. E mijar forte, o pênis livre das mãos e da preocupação da cueca. Talvez masturbar-se antes de calçar as Havaianas. Mas certamente enxugar-se filosofando: é impossível encher a piscina do Bob Esponja; o chuvisco refresca sem inundar; Havaianas molhadas gemem como velhas portas.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

NEW BEDFORD HIGHWAY KILLER

Todos as noites, o velho cowboy entra na velha caminhonete e ruma para a Rodovia da Morte, a New Bedford Highway Killer, estacionando na margem do km onde o corpo de sua filha foi encontrado, dilacerado, dentro de um vestido azul sujo de barro e gramíneas, o pescoço mole. 

Uma caixa de cervejas debaixo do braço, uma pistola pendendo da mão, o cowboy adentra no campo com respiração regular. Ele se senta num velho troco de árvore. O mesmo de sempre. E deixa os faróis da caminhonete ligados atrás de si, faróis baixos que iluminam suas costas, seu chapéu, projetam sua sombra gigantesca e irregular campo adentro. 

O velho cowboy repete o mesmo ritual há nove anos. Como se se soubesse caçado, o assassino nunca retornou. Mas o cowboy tem sinceras esperanças, e bebe todas as cervejas com o cão armado e o dedo no gatilho. Às vezes venta forte. A vegetação se move e faz barulho. Algo estala.

Mas cowboy é, também, um pragmático: ele sabe que é mais fácil chover do que algo assomar de dentro do mato. Então chove, chove muito. O cowboy não se move. Não meneia a cabeça aprovando ou desaprovando nada. Seus olhos de tigre observando a dança da chuva, seus ouvidos atentos às gotículas que repercutem forte na aba do chapéu. 

Antes de amanhecer, o Cowboy entra na caminhonete e vai-se embora, bebendo o último gole da última cerveja quando estaciona na garagem de casa. Já não chove quando ele abre a porta do quarto. Sua mulher está na cama, mas não dormindo. E o vê tirando as botas e despencando como uma velha árvore do Estado de MassachusettsO cowboy dorme sonhando com o aceno e o sorriso da sua garota. Um longo tchal. Na última vez que a viu saindo de casa

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

FUGA FUGAZ

Sonho: estou no Japão medieval, correndo entre ervas, fugindo de um samurai que me persegue com sua espada cirúrgica. Tropeço e caio, porque assim deveria acontecer. Viro-me, e o samurai está em posição de golpe. Baixa os braços, a espada, sinto a lâmina me atravessando. Partido ao meio, em partes simétricas, não sinto dor, não obstante banhado de sangue. Estou consciente: minhas duas partes se comunicam, as metades da minha boca verbalizam algo. Então levanto e saio pulando num só pé, mas com dois pés, apesar das minhas duas partes, agora autônomas, tomarem rumos diferentes. Corro cada vez mais rápido, como um saci duplicado. É quando outro guerreiro aparece. Uma réplica do primeiro. E agora eles são dois. Dois samurais que me perseguem entre ervas, empunhando suas espadas cirúrgicas.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

PRIMAVERA

A menina colhe a flor.
O carro colhe a menina.

sábado, 31 de agosto de 2013

UMA FOTOGRAFIA

Há uma fotografia em que apareces especialmente linda. Sentada no sofá, pernas cruzadas, rindo, com duas mechas do cabelo – um parêntese emoldurando o rosto – tentando penetrar tua boca. No lado direito, uma cachorra, dessas pequenas e espalhafatosas, está admirando – e incrivelmente, na mesma posição do cão do logo da RCA – a pequena bailarina que rodopia na caixinha de música sobre tuas pernas lisas. No lado esquerdo, um Deus sisudo toca arpa, acompanhando a melodia. Atrás, um pouco acima da estante da sala, perto do relógio cujos números são frutas – uma banda de maçã, um cacho de uvas –, o calendário de uma loja de autopeças marca dois mil anos. Mas ainda estamos em Mil Novecentos e Noventa e Nove, e teus olhos, duas tochas vermelhas reveladas pelo flash da Yashica, indicam que morrerá dali oito meses, de câncer, com um túnel negro estendido entre tuas entranhas e tua boca murcha, enfim penetrada pelas duas mechas – que são, agora, dois tentáculos rasgando-te a cara, como nos mangás japoneses.

terça-feira, 25 de junho de 2013

HAVERÁ UM DIA

Haverá um dia que não retornarei mais da rua. O telefone tocará dentro do bolso da calça até a ligação cair na caixa postal. Um tiro? Os pneus de um caminhão? Um curto-circuito no peito? Haverá um dia que não abrirei mais, bêbado, a porta de casa. Adeus, constas a pagar. Adeus, vidinha medíocre e a prazo. Haverá um dia que não sentirei mais aquela necessidade fremente de meter uma bala no céu da boca. A morte é uma torneira que seca ou um cano que estoura? Haverá um dia que não esquecerei mais de levar a tolha para o banheiro. Cru, dentro da frigideira, dentro fogão, apodrecerá um bife temperado pela velha mãe.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

O INVENTOR DO TOBOGÃ

Às vezes eu fico pensando no inventor do tobogã. Na sua vidinha de merda de acordar às seis da manhã para ir comprar pão na padaria. Ó, que belo invento. Que adrenalina proporcionada. Só um homem muito medroso para inventar uma engenhoca cuja maior função é proporcionar uma falsa sensação de perigo. Em verdade, ele deve tê-lo inventado na tentativa de ignorar as traições da esposa. Na tentativa de esquecer a própria existência, nem que fosse durante os poucos segundos que o separavam do mergulho no lago morno e salobro de azulejos azuis. Mas qual? Se a realidade, inexorável, sempre emerge da água, junto com seu corpo flácido e sua falta de ar? Como conforto, só lhe resta assuar o nariz e sair desajeitado da piscina. Medíocre, traído, conformista, o inventor do tobogã deve ter morrido de tristeza.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

O SUICIDA E OS APOSTADORES

Um homem está escalando uma torre de televisão. É um suicida e pretende se jogar quando chegar ao topo. Dois apostadores vão passando. Decidem apostar cem reais: se o homem se jogar do topo da torre, um deles ganha; se se desequilibrar e cair antes, quem ganha é o outro. Perto do topo ou já no topo (a torre é alta; é quase impossível visualizar perfeitamente a cena) o homem despenca. Os dois apostadores divergem. Ambos acham que ganharam a aposta. Há uma discussão calorosa e um deles saca uma arma de fogo e mata o outro. Cinco tiros de pistola. À noite, em casa, o apostador assassino assiste o telejornal. A lente da câmera não deixa dúvidas: o suicida se desequilibrou e caiu pouco antes de alcançar o topo. O apostador assassino entra em parafuso. A intransigência e a ganância o fizeram tirar a vida de um amigo de longa data. Na manhã seguinte, procura a mesma torre. Não merece viver. Começar a subir. Quer se jogar do topo. Dois apostadores vão passando.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

CONTRADIÇÃO, OPOSIÇÃO, PARADOXO

Enquanto meu velho fumava seus Mustangs sentado numa cadeira de macarrão, o pequeno homem melado de tinta se equilibrava na escada e avançava com o pincel: “Bar”, “Bar do”, “Bar do Sil”. E eu estava tão entretido  sentado no chão de areia branca e observando os dois adultos que quase não percebia três ladrões fugindo com dois bons gados de corte. Mas rápido acionei meus capatazes, que rápido mataram os ladrões e rápido retornam com meus nelores – um azul e outro amarelo. Quando enfim levantei a cabeça – entretido que já estava com a insegurança que rondava meu rebanho –, pude perceber que o pintor finalizava o seu trabalho. Ele então desceu da escada, e postou-se ao lado do meu pai, visivelmente satisfeito com a obra. Adiante e acima da fumaça cinza que o Seu Chico jogava no ar, surgiu para mim – vermelho sangue, gordo, estilizado – o nome “Bar do Silêncio”. Foi quando, junto com o vento fresco das oito da manhã, a didática da infância roçou na minha cara o que só muitos anos depois um professor traduziria pelos nomes de “contradição”, “oposição”, “paradoxo”.

domingo, 24 de março de 2013

INDO PRA AMARANTE NUM ÔNIBUS DA VBL

O motorista tenta pela sexta vez, mas não consegue nada. O máximo que ouvimos é um ruído que lembra um estrebucho, um grito abafado, o ronco de um moribundo na enfermaria de um hospital. O motorista enfim desiste, levanta-se suado (a calva principalmente), e, esticando muito as pernas para poder passar por cima do velho motor do Mercedes, diz: “Vamo ter que descer, pessoal. Esperar o outro que tá vindo aí atrás.” Aliviados por poder deixar o ambiente sem janelas e sem refrigeração, mas também contrariados por ter que esperar nova condução, os passageiros da Viação Branca do Leste recolhem suas bagagens e vão descendo aos poucos, em fila indiana, bufando, resmungando, até encontrarem-se todos do lado de fora do ônibus, às margens da rodovia Ma-122, entre os municípios de Senador La Roque e Buritirana. São nove horas da manhã e não existe nenhuma sombra às margens da estrada sem acostamento, exceto a que foi projetada pelo próprio ônibus quebrado, no exíguo espaço entre este e a alta vegetação do local. Humilhação das humilhações, é a esta sombra que os passageiros tem de recorrer se quiserem se proteger do seco sol de agosto (1). Eu e o sargento Paulo preferimos ficar no lado oposto da rodovia, expostos às intempéries, fumando e rindo com bastante raiva. “Pode ser que a gente pegue uma carona aqui desse lado”, disse o sargento, devolvendo-me o isqueiro (2).

Convenhamos que não é sempre que o ônibus quebra – às vezes ele apenas “atrasa”. O horário previsto da primeira viagem para Amarante são seis da manhã. Dez pras seis, já estamos na agência da empresa – rua Maranhão com rua Aquiles Lisboa –, eu e outros dez passageiros ávidos para embarcar no que quer que seja. Às vezes, devido a demora, alguém vai até o guichê e pergunta para a funcionária o motivo do atraso. Mal humorada e irônica – afinal é nela que os passageiros descontam o mal estar gerado pela concessionária do transporte intermunicipal –, a mulher sempre resmunga alguma coisa que receio entender por “eles estão apenas tentando consertar a buzina” ou “estão trocando um pneu totalmente careca por outro que está fazendo tratamento capilar com Hair Sink Fresk”. Nesses minutos de espera, o que se vê são as pessoas caminhando impacientes pela calçada enquanto manuseiam seus celulares ou olham seus relógios de pulso. Geralmente eu procuro abstrair, e estava pensando em trazer bolhas de plástico na próxima vez para estourá-las com o sol raiando, quando, para o espanto de todos, vindo na contramão da rua Aquiles Lisboa, aparece o ônibus da VBL.

O motorista infrator de trânsito (3) é um que já conheço. Baixinho e sempre sorridente, tem um aspecto bizarro: o rosto é de um menino de treze anos (um menino calvo); o corpo, de um homem de quarenta. É uma aparência realmente estranha, tão estranha quanto a do cobrador, uma magricela que lembra o jabuti fora do casco de algum desenho animado da Hanna-Barbera. Os dois conversam sempre (4), e são exímios piadistas, fazem piada sobre tudo, os mais esdrúxulos temas, embora sempre regressem para a clássica piada de conteúdo homofóbico (talvez, aliás, o tipo predileto de piada de todos os motoristas e cobradores do mundo). Como não podia ser diferente, o motorista é daqueles que corre muito, pisa fundo no pedal. Às vezes, no trecho menos esburacado entre Buritirana e Amarante, desenvolve mais 100 km por hora. Já percebi que ele gosta particularmente de passar veloz numa determinada curva. Uma curva aberta, sem buracos, mas não menos perigosa que qualquer outra curva de qualquer outra estrada. Já percebi que eu também gosto da emoção de passar veloz naquela curva, sentir o friozinho na barriga ao imaginar o ônibus quase perdendo o controle, quase saindo da estrada. Nessas horas, invariavelmente, penso como seria minha reação diante de um capotamento. O ônibus deslizando na curva, as pessoas gritando, bagagens caindo sobre as nossas cabeças, e finalmente o capotamento – três vezes, até o Mercedes parar, amassado, com os pneus para cima. Imagino então eu me arrastando entre as ferragens, achando a janela de emergência, saindo pra respirar um pouco e depois, ensanguentado, retornando pra dentro do ônibus e salvando diversas pessoas antes do veículo finalmente explodir. Eu imagino isso durante o período de uma curva e me sinto um fugaz herói de rede nacional.

De Imperatriz para Amarante o ônibus faz muitas paradas. A primeira delas é no terminal rodoviário, ondem outros passageiros e encomendas são embarcados e o ônibus é fiscalizado pela própria empresa. Quando enfim atingimos o inicio da Avenida Pedro Neiva de Santana, já decorreram mais de trinta minutos desde a saída da agência da VBL, localizada no bairro Mercadinho. Antes de chegar em João Lisboa, temos mais paradas para embarque de mais passageiros e mais encomendas, e assim durante toda a viagem, a cada povoado ou mesmo em trechos despovoados, quando passageiros retardatários acompanham o ônibus nas garupas de moto-taxis. Há de se frisar também que existem as paradas previamente agendadas para a alimentação – café da manhã, almoço ou janta, dependendo do horário. Em Buritirana, o local escolhido é uma lanchonete localizada ao lado da praça central. Muitos comem por lá, em pé, encostados no balcão; outros preferem comprar os alimentos e comê-los dentro do ônibus. Esses últimos, saciada a fome, abrem as janelas e jogam o lixo fora: embalagens de picolé, latas de refrigerante, restos de pasteis envoltos por guardanapos engordurados, e até cocos da praia que quicam no asfalto até encontrar o seu lugar ao sol, à beira da rodovia. Também há se frisar que antes de Buritirana existe outra parada, e esta é a preferida da tripulação a que me refiro neste artigo. Fica numa pequena localidade denominada Ingarana (5), um lugar de poucas casas mas com consideráveis banquinhas familiares que vendem, predominantemente, espigas de milho assado e cozido e caldo de cana de açúcar. Nesta parada, a tripulação se esbalda: o menino de quarenta anos e o jabuti fora do casco sempre comem duas espigas de milho cada um, uma cozida e outra assada. Enquanto um come a assada, debulhando-a, o outro morde a cozida, e a morde com tanta força de vontade que às vezes penso que lascas do sabugo também são deglutidas. De quebra, emborcam um copão de caldo de cana, num repente, sem tirá-lo da boca, formando os dois uma estranha sincronia. Quando terminam, o menino e o jabuti retornam para dentro do ônibus sem sequer avisar os passageiros. Se não ficamos atentos às acelerações desnecessárias do veículo (deve ser esta a forma que escolheram para avisar que o ônibus está partindo), corremos o risco de ficar pra trás.

Os passageiros do ônibus são, em geral, pessoas que moram em Amarante. Há também os que moram nos outros municípios entre Imperatriz e aquela cidade (João Lisboa, Senador La Roque e Buritirana), além dos que residem nos diversos povoados existentes no percurso. O resto é composto de pessoas que vão para Amarante a trabalho – vendedores, profissionais liberais, pequenos gatunos, professores, policiais (6), etc. Quando comecei a fazer esse percurso, desconfiado que sou (temia acontecer um assalto), passei por um dilema: sentar no fundo do ônibus ou na frente? No caso de um assalto (7), qual seria o lugar menos perigoso? Se sentasse nas últimas poltronas, temia ser de pronto reconhecido pela sagacidade do assaltante, visto que, via de regra, é essa parte do ônibus que os policiais preferem ocupar; se sentasse nos bancos da frente, temia que a mesma sagacidade do mesmo assaltante deduzisse que o sujeito barbudo, de óculos e boné sentado logo na primeira fila era na verdade o filho da puta de um policial que, estando num lugar atípico para a “classe dos policiais”, na ala geralmente ocupada por “passageiros comuns”, tentava passar-se despercebido enquanto aguardava de forma sub-reptícia a pronúncia da célebre frase “Isso é um assalto!”. Avaliando prós e contras, optei por, no final, sentar nas ultimas poltronas.

A enorme quantidade de quebra-molas da MA-122 e a situação precaríssima da sua capa asfáltica estão, de certa forma, ligados ao péssimo estado do ônibus. Um dia, decidi contar a quantidade de lombadas, mas, quando o ônibus do tipo “Executive Class” passou por uma das tantas (8), fui jogado para o alto e bati a cabeça contra o teto do veículo. Mesmo não tendo quebrado o pescoço, perdi a contagem das lombadas (9) e de imediato procurei, ainda que em vão, o cinto de segurança. Nada justifica os péssimos ônibus (10) da Viação Branca do Leste, mas é realmente difícil manter um automóvel em condições plenas de trafegabilidade dispondo de uma rodovia assim. Certa vez, indo à noite de moto para Amarante, um policial militar foi surpreendido por uma cratera que havia comido metade da pista. Chovia, não havia sinalização nem iluminação. Tragado pelo buraco, o policial não conseguia sair debaixo da moto. Uma forte correnteza barrenta tirava-lhe o fôlego e o impossibilitava de gritar por socorro. Não fosse a ajuda de outros condutores que o perceberam ao passar pelo local, o policial havia morrido afogado. Noutro caso, um rapaz que estava indo para um culto evangélico em Amarante foi surpreendido numa curva por um caminhão da Coca Cola. Sua massa cefálica e pedaços do osso da sua canela espalhados pelo asfalto deixavam claro a morte imediata. Caso não houvesse um buraco na via do caminhoneiro, ele não teria avançado a contramão e o rapaz não teria sido atropelado. Certamente nenhum dos familiares, seja do policial ou do rapaz, entrou com qualquer tipo ação indenizatória. Se todos os acidentados ou os parentes dos mortos na MA-122 entrassem na justiça contra o governo, em pouco tempo, pra evitar mais gastos do tipo, o Estado não só recapearia a estrada, mas a alargaria e a iluminaria.

Enquanto nada muda, o ônibus da VBL continua demorando quase quatro horas (11) para percorrer os 110 km que separam Imperatriz de Amarante. Certamente, nem o juiz, nem o promotor, nem a prefeita daquela cidade costumam fazer esse trajeto. Se o fizessem, pelo menos desembarcariam como nós – com o corpo se contorcendo de dor e a necessidade premente de passar no mínimo uma hora deitado sobre um colchão d’água.


NOTAS

(1) Para o observador externo que passasse àquela hora pelo local, a impressão que calharia melhor seria a de que as pessoas estariam embarcando no ônibus, como se fossem alegres residentes das cercanias entrando num transporte público de qualidade, e não o contrario, passageiros fatigados à espera de uma baldeação. 

(2) De fato, pouco tempo depois conseguimos uma. Ao nos reconhecer à beira da estrada, um médico de Amarante nos fez adentrar no seu veículo luxuoso, perfumado, que mais parecia a nave da Xuxa. Quando nos aproximávamos da entrada da cidade, a nave da Xuxa colheu um idoso que atravessava a rodovia de forma imprudente e o jogou uns três metros para o alto. O homem morreu na hora e a nave, desgovernada, rodopiou quatro ou cinco vezes antes de bater num carro de boi carregado de barro e parar junto a uma cerca com o motor esfumaçando. Graças aos seus vigorosos “air bags” e a sua performance segura ao derrapar pelo asfalto, saímos apenas com escoriações leves (afinal, a nave não capotou). Lembro que ao descer do carro, pernas bambas ainda, a primeira coisa que o sargento Paulo me disse foi: “Me arruma teu isqueiro aí, barbudão.

(3) Consta que cada motorista é obrigado a fazer quatro viagens por dizia. Isso é desumado. Neste ritmo, além atropelar todas as normas de trânsito, em pouco tempo estarão todos eles herniados.

(4) O estranho é que apesar de conversarem sempre, conversam apenas entre eles mesmos. Com os passageiros, falam somente quando provocados e apenas o indispensável. Suponho que tal comportamento arredio deve envolver, necessariamente, alguma aura que eles julgam importante. É como se evitassem contato conosco por se considerarem superiores. E é como se se considerassem superiores pelo simples fato de serem o motorista e o cobrador do ônibus.

(5) Ingarana, segundou me informou a vendedora de caldo de cana, é uma árvore típica de nossa região.

(6) Há uma espécie de política de boa vizinhança entre a Viação Branca do Leste e as forças de segurança locais que desobriga a nós, policias civis ou militares, a pagar passagem. Basta mostrar a carteira funcional ou, quando já conhecido, nem isso. No meu caso, mesmo eu já estando há um bom tempo embarcando no ônibus das seis da manhã, o cobrador sempre perguntava: “O senhor já tirou passagem?”. Naturalmente, era só eu mostra-lhe o distintivo de investigador que ele meneava a cabeça, satisfeito. Reconheço que me identificava com certa mágoa, já que tinha certeza de que ele tinha certeza que eu era policial. Ora, entre todos os “canas”, por que não lembrava apenas de mim? Penso que, no final das contas, ele fingia desconhecer-me porque me escolhera para tripudiar (ainda que de forma genérica) a força repressiva do Estado (molestando o seu agente).

(7) Felizmente, na linha Imperatriz/Amarante/Imperatriz não há ocorrência de assaltos.

(8) Alguns são tão estreitos e altos que carros pequenos, mesmo atravessando-os da forma mais “atravessada” possível, geralmente ficam presos nos seus cumes, com as quatro rodas suspensas.

(9) Certamente, o número de quebra-molas está na casa de uma centena ou mais.

(10) No encosto da poltrona à minha frente, lê-se os seguintes rabiscos à caneta distribuídos de forma esparsa: “Fabiola boqueteira” (e, logo abaixo, o suposto telefona da moça), “Palmas - TO”, “Ide a todo mundo e pregai” e “Galera do 3 Ano A, a melhor [ininteligível] ”; no corredor do ônibus, lixo orgânico e inorgânico; nos vidros das janelas, adesivos com comercias de auto-escolas, pedaços de chiclete ressequido e, no mesmo estado, pequenas bolas de algo que julgo ser meleca de nariz; no lado de fora, cheiro de borracha queimada; nos assentos, manchas encardidas; no ônibus todo, cheiro de mofo.

(11) Imagine passar todo o tempo desse percurso ao lado do Nanny Viera. Imaginou?