terça-feira, 29 de setembro de 2009

CADA UM NO MESMO QUADRADO

Balance (1989), curta de animação dos alemães Wolfgang e Christoph Lauenstein.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

SÉRGIO SANT'ANNA E EDWARD HOPPER

Nighthawks - tela de Edward de Hopper (1942)


"Mas algo, agora, bem mais quieto e manso e, no entanto, de uma melancolia tão profunda, que porém não se afirma ou explica e é mesmo muito bonita e, entretanto, apenas isso: um balcão de lanchonete numa madrugada americana de 1942 entrevisto de fora, através de um vidro, e onde se percebe, em primeiro plano, um homem sentado de costas para a rua, vestido de terno e chapéu e que, silencioso, concentra-se na comida ou bebida que está diante de si e que não podemos ver, como vemos, por exemplo, à direita, no espaço interior do balcão, um homem de uns cinquenta anos vestido num uniforme branco de balconista, inclinado para lavar na pia algum copo ou prato que também não vemos, como podemos ver, por exemplo, um casal do outro lado, este sim, quase de frente, na parte esquerda do quadro, porque estamos é diante da reprodução de um quadro, e que apenas olha fixo, em frente, esse casal, tipicamente americano, um homem de trinta anos aparentes, também de chapéu e terno, e a mulher, loura naturalmente, e não se falam ou tocam, como se tudo já fora gasto nessa noite e apenas estão ali, eles quatro, madrugadores, boêmios (Nighthawks), vistos algum dia pelo pintor Edward Hopper, uma espécie de realista ortodoxo, e, entretanto, talvez por isso mesmo, o que acaba por saltar dessa realidade é uma matéria de sonho e um sentimento que se nos passa e temos quase vergonha de chamar pelo nome tão comum - solidão – e que vem principalmente desse silêncio visto num quadro e das pessoas imóveis e também das cores que o pintor num dia qualquer deve ter perguntado a si mesmo, misturando as tintas: qual seria a tonalidade justa para uma rua completamente deserta iluminada apenas pela luz de uma lanchonete onde quatro pessoas cumprem os ritos vagarosos de uma pequena refeição e dos pensamentos incomunicáveis, quase solenes, daqueles que, mesmo próximos uns dos outros, estão absolutamente consigo mesmos?"

Sérgio Sant’Anna - trecho do conto Cenários, do livro O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982)


"Fórum Virtual: Como em Um Crime Delicado, as Artes Plásticas são, nesta última obra (O Voo da Madrugada), parceira fundamental. Você poderia falar um pouco sobre a relação da sua escrita com as Artes Plásticas?

Sérgio Sant’Anna: As artes plásticas, semItálico que eu possa precisar por quê, exatamente, sempre foram, como o teatro, uma provocação para eu escrever. Eu sempre considerei as artes plásticas as representações mais radicItálicoais entre todas as artes, principalmente no século vinte e mais ainda no princípio dele. E elas transmitem aos meus textos um clima de "representação", de plasticidade, de cenário, ao que escrevo. Aliás tenho um conto chamado Cenários, em O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. O conto partiu da memória que eu tinha do quadro Nighthawks, de Edward Hopper, e aborda o tempo todo as impossibilidades da escrita. A impossibilidade, por exemplo, de descrever com perfeição aquele ambiente noturno de Hopper."

Entrevista de S.S. publicada no Fórum Virtual de Literatura e Teatro – por Beatriz Rezende (2004)

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

AMARANTES E DEPOIS

“Chora, alma minha, sangra por minhas veias o veneno desse adeus”
Banda 40 Graus ao vivo em Pio XII (em ritmo de Arrocha)


Antes

O que é que eu tô fazendo da minha vida? Embarquei na Nova Sião pensando nisso e escutando umas musiquinhas tristes do Nei Lisboa e do Edvaldo Santana que não paravam de tocar dentro da minha cachola. O quê? Não abotoei o cinto de segurança, acomodei minha perna esquerda dolorida no vão das poltronas e lembrei do que o Darcy Ribeiro escreveu no prefácio dO Povo Brasileiro. "Não foi assim. Desencadeou-se sobre mim o vendaval da vida". Então não foi assim comigo também. E um vendaval similar ao que quase comeu de uma só vez o pulmão do Darcy me carregou de mala e cuia pro Amarante do Maranhão.


*


Em Amarante, mulheres jovens que têm pelo menos três filhos é coisa normal. Outra normalidade é o grande número de sendeiras, menos por opção e mais por não suportarem a violência doméstica. E o normal mais anormal dentre as amarantinas: aquelas que apesar de tudo isso - olho roxo, filhos aos quilos - ainda são extremamente conservadas de corpo, de rosto e de bunda. São tantas e tão corriqueiras que quando saímos à noite, ciceroneados pelo Zé Bocão, funcionaio ad-hoc da delegacia, a primeira coisa que perguntamos ao olhar uma mulher bonita é: "Zé, essa daí tem quantos meninos?" Ou: "Faz quanto tempo que essa daí tá sendeira?"

Mas há quem diga que tais amarantinas apanham todos os dias, tem pencas de filhos e desquitam rápido porque chifram muito os namorados, os maridos e os amantes, indiscriminadamente. Contaram-me dois casos exemplares envolvendo conhecidos moradores do município. O primeiro: fulano trabalhava a noite inteira e quando voltava pra casa, pela manhã, encontrava o lar doce lar todo desarrumado - sala, quarto, cozinha. Ao perguntar pra mulher o porquê da desarrumação, a resposta era que ela passara a noite com insônia, assistindo TV e comendo. Certa madrugada, abandonou o serviço e chegou de surpresa em casa. Mas a surpresa, na verdade, não foi ele chegar naquele horário. A surpresa foi encontrar um negão de dois metros de altura e dois palmos de pica dentro do seu quarto, mais precisamente em cima da sua mulher. O segundo: ciclano estava em casa assistindo a uma partida de futebol. Bateram na porta. Ele atendeu e o informaram que sua mulher estava praticamente desacordada em cima de uma carroça, bêbada e pelada, após ser fodida por cinco adolescentes. Ele não deu trela, bateu a porta na cara dos fofoqueiros e retornou pra frente da TV. O primeiro, que viu, pediu a separação; o segundo, que preferiu não ver, continua morando junto.

"Sim, mas e as histórias da delegacia?", devem estar se perguntando os meus cinco leitores. A verdade é que não há muito o que falar sobre a delegacia. O delegado viaja constantemente e as ocorrências são poucas. Quando muito, alguém denunciando o vizinho porque o jumento deste invadiu o quintal daquele. Gente reclamando da altura do som na residência de determinado aniversariante. Futricas de donas de casa porque seus filhinhos de seis anos brigaram no pátio da escola, próximo ao bebedouro central, mais precisamente a três metros do carrinho de pipoca do véi Antônio. Intimações em geral, enfim. Trabalhamos mesmo quando o delegado está por lá. Aí o bicho pega e o dia passa voando. Sem contar que o delega é uma figura. Quando não há ocorrência pra resolver, ele passa o tempo falando de boceta, cu e boquete. Ou então, no meio de uma conversa séria ao telefone, ele surpreende a interlocutora com uma dessas: “Olha, sacana, lava bem esse priquitin que hoje eu tô baixando por aí, viu?”.

No sábado ou domingo, chegaram uns amigos de Imperatriz -Iuri, Alcindo e Frabrício - com destino a uma aldeia das cercanias. Eles iam brincar de índio, mas antes passaram pela residência de moá. Convidei-os então para um programa de branco: comer carne assada numa churrasqueira elétrica, na cozinha da delegacia, um cômodo anexo à carceragem, na companhia dos PMs e de outros colegas da DP. Senti-me estranho: a gente se esbaldando com cada pedação de carne entre os dentes e os presos, coitados, só sentindo o cheiro. Terminado o churrasco, retornamos para a Casa Caju de Janeiro - é este o nome do nosso apê, inscrito em letras garrafais um pouco acima da porta - e tiramos aquela boa e velha soneca sob os 38 graus Celsius amarantinos. Mas os caras tinham que seguir pra aldeia. Na despedida, desejei boa viagem pra todos. Quando eles tavam saindo, entretanto, disse baixinho pra mim mesmo: “Vão simbora, bando de carniça”. E quando eles já tinham desaparecido, um PM me perguntou se o Fabrício tava com gripe suína. Eu disse que sim. Tava sim.


* Itálico

Depois
Itálico
O que é que eu to fazendo da minha vida? Embarquei pensando nisso no Pajero do Dr Eliesio – advogado conhecido vulgarmente por Pescoço Duro - enquanto ouvia umas musiquinhas alegres que tocavam sem parar na FM do meu músculo bombeador de sangue. O quê? Abotoei o cinto de segurança, minha perna esquerda não doía sobre o banco de couro confortável do carrão e eu nem lembrei de Darcy Ribeiro, de prefácio, dO Povo Brasileiro, de vendaval, de nada. É que eu tava voltando numa aconchegante carona pra Imperatriz do Maranhão.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

ENQUANTO A CHUVA DE GRANIZO NÃO VEM

Dentro do quarto, girando negativamente a cabeça em cima da cadeira, o ventilador é o sopro quente de um secador de cabelo. Tudo parece está pegando fogo: o travesseiro debaixo do pescoço, as roupas no varal, a impaciência do papagaio da vizinha. Se ao menos alguns aviões similares àqueles que combatem incêndio nos EUA sobrevoassem a minha casa despejando tempestades de quando em quando. Se ao menos as lojas de departamentos vendessem macacões de Fórmula 1 revestidos com cubos de gelo especialmente fabricados para esta época do ano. Se ao menos as noites não fossem tão quentes quanto os dias. Se ao menos se. Mas não. Não de não conseguir dormir ou permanecer acordado sossegado. Não de não ter tino para a leitura de um simples jornal. Não de não suportar o excesso de suor descendo pela testa, pelo pescoço, pelo peito. Talvez os teóricos do Determinismo Geográfico tenham lá alguma razão. E esse calor sem fim funda mesmo o nosso juízo. A ponto de forjar a possibilidade de mudar a cama do quarto para dentro da caixa d'água do quintal. Ou de querer entrar na HQ Arzach e só sair de lá quando estiver montado no pterodáctilo fossilizado de Moebius para sobrevoar este inferno. Ou - contrariando teorias e teóricos - ir descalço pro meio da BR 010 e ensaiar moomwalker entre o vai e vem dos caminhões até sentir-se apto para caminhar sobre brasas.

*

P.S.: A partir de hoje, este Hotel passará um tempo fechado. É que domingo viajo para Amarante (terra em que, graças a Deus, não há internet nem telefone celular). Se tudo der certo, trabalherei duas semanas por lá e no dia 22 estarei de volta. Aí reabro este estabelecimento. Então é. Deu pra mim. Vou pra Amarante. Tchal.