O tipo esguio e baixo, de um
branco queimado de sol, assoma na esquina do quarteirão do Bar da Lurdes às nove em
ponto da manhã, conforme o combinado na noite anterior. Ele caminha rápido e um
pouco desconfiado, sempre olhando para trás. Na mão esquerda, traz um maço de
cigarros WL; na mão direita, entre as
falanges dos dedos amarelados, um cigarro da mesma marca fumado pela metade.
Calça um par de sandálias do tipo havaianas tão gasto e encardido quanto a
bermuda escura e a camisa branca em que se lê, ainda que um
pouco apagada, a inscrição Feliz 2007. À medida que ele vai se aproximando, as sandálias revelam-se de cores
distintas: enquanto uma é esbranquiçada e tem cabrestos verdes, a outra é
completamente azul.
“Num disse que vinha às nove horas?” A voz do
homem, se comparada com a mesma voz da noite anterior, parece estar um pouco
mais grave e pastosa. Ele se senta à mesa e pede ao garçom uma cerveja Skol, que
bebe a goles bovinos. “É a sede do crack”, diz, depois de sorver o segundo copo
e servir o terceiro. Francisco das Chagas Alencar, hoje conhecido apenas como
Chico Doido, já teve família e emprego fixo. Antes de se tornar dependente
químico, trabalhou como torneiro mecânico na Retífica Machado de Motores, umas
das oficinas mecânicas mais tradicionais de Imperatriz, a segunda maior cidade
do Maranhão. Nessa época, Francisco morava com a mulher e as duas filhas –
Isadora, de onze anos, e Isabel, de dez. De Francisco para Chico
foram poucos tragos: “quando caiu a ficha”, como ele mesmo diz, “eu já tava
feito zumbi fumando crack pela rodoviária”.
Na noite anterior, encontrei o Chico Doido na
esquina do antigo Bar Olho de Boi,
nas imediações do que um dia foi o primeiro terminal rodoviário de Imperatriz.
Trajando a mesma roupa gasta, ele andava apressado de um lado para o outro,
“fazendo favor pros outros pra poder descolar o meu”, como confessaria depois.
De início, quando o abordei, o “ex-Francisco” mostrou-se desconfiado: “Tu tem
cara de cana”. Com o passar do tempo e a ingestão de algumas cervejas em lata –
sempre Skol, a sua marca preferida –, Chico decidiu abrir o jogo e acabou
revelando que estava ali fazendo “um corre pros chegados” que sempre aparecem no
setor da antiga rodoviária. A expressão “fazer um corre”, segundo ele, quer
dizer “comprar droga pros mauricinhos viciados que ainda moram com os pais”. O
“corre”, nesse caso, evita o contato direto do traficante da área com os
viciados desconhecidos. Pra fazer esse intermédio, Chico Doido conta que ganha,
dependendo do usuário, “de uma a três cabeças de crack” de cada vez.
As “cabeças” – outra forma como o crack é conhecido
– variam de dez a vinte reais. “Uma de vinte dá pra fumar uns cinco mesclados”,
diz Francisco. “Mesclado” é o nome dado ao cigarro de crack, seja ele misturado
com tabaco ou maconha. Outra forma de fumar a substância entorpecente é
utilizando um cachimbo. Quando não se tem o cachimbo convencional, improvisa-se
um utilizando uma lata de refrigerante ou de cerveja. “Isso é fumar na lata”,
esclarece Francisco, “mas eu prefiro fumar no cigarro mermo”. E quantas pedras fuma por noite? “Às vezes dez, às vezes vinte, dependendo do movimento”,
diz, enquanto sai apressado ao perceber o sinal de luz dado por um motoqueiro
na esquina da rua Tamandaré com a rua Pernambuco. A julgar pelo movimento da
noite de segunda, Chico Doido fará muitos “corres” e fumará muitas “cabeças”.
No
organismo, o crack age rápido. Tão logo inalado, ele se espalha pela corrente
sanguínea e começa a circular pelo corpo. A sensação de prazer é curta, o que
leva Francisco constantemente a se esconder num beco entre duas casas para dar
outra baforada no cigarro estrategicamente escondido entre os furos de um
tijolo. O dependente quase não come ou dorme, e a magreza e os olhos fundos do
Chico Doido confirmam isso. Quando retorna
de mais um “corre”, a sua respiração está ofegante. Perguntado se sabe que o
crack pode gerar lesões no pulmão, ele responde “eu só sei é que dá muito é
sede”, enquanto leva a latinha de Skol à boca.
Francisco nasceu e sempre morou em Imperatriz, no bairro Bacuri. Lembra
que na infância, além de brincar do “Se Esconde”, chegou a banhar no riacho que
dá nome ao bairro. Hoje reconhece que tudo mudou para pior, tudo foi poluído –
as brincadeiras, o riacho, ele próprio. Sente saudade dos tempos de escola – do
geladinho de cajá no pátio do colégio, no recreio, à salada de fruta geladinha
com cobertura de Leite Moça, na Praça Tiradentes. Quando terminou o ensino fundamental da
época, teve formatura e tudo. “Minha mãe chorou na hora da foto”, lembra, de
olhos marejados. Aos 16 anos, foi estudar no CEFET, atual IFMA. Lá fez o curso técnico de
torneiro mecânico e imediatamente começou a trabalhar na Retífica Machado. Foi
por essa época que conheceu Isabela, a esposa. Ela também empregada, os dois
resolveram morar juntos. Logo apareceram as filhas – “as duas princesinhas do
papai”, como ele diz – e, com elas, mais vida e alegria na pequena casa da Rua
Beta, número 16, coração do Bacuri.
“Mas aí veio o crack”, diz Chico Doido, tentando
fugir do sol das dez da manhã arrastando um pouco a cadeira com o peso dos poucos mais de cinquenta quilos do seu corpo. A primeira vez que fumou uma pedra de
crack foi quando resolveu beber uma cerveja justamente no Bar Olho de Boi. “Eu
tava saindo do trabalho pra casa e o bar é no caminho”, diz ele. Nesse dia,
fumou tanto com as prostitutas que fazem ponto na rodoviária que só chegou em casa às seis da manhã. “Só deu tempo de discutir com a mulher, tomar
um banho e voltar pro trampo”, fala, enquanto acomoda o sexto casco de cerveja
embaixo da mesa. Desse dia em diante não teve mais volta: “Com um mês eu já não
tinha mais emprego nem família”, relata. Como ainda tinha dinheiro, passava as
noites com as prostitutas nos motéis das cercanias da rodoviária. Quando a
grana acabou, as prostitutas sumiram e ele passou a dormir na rua. “Isso foi
em 2007”, diz, apontando pra camisa rasgada. “Isso foi o meu feliz 2007”.
Já são quase onze da manhã quando Chico se levanta
para ir embora. Embora para onde? Com o dinheiro que descolou, vai ver se dorme
um pouco num quartinho de hotel. Depois, vai passar algum tempo sóbrio vigiando motos na frente da Caixa Econômica, na Praça Brasil, centro de Imperatriz. Os outros vigias não gostam muito da presença dele, mas se o movimento for grande, ele passará despercebido e dará para apurar no mínimo uns sete reais. “Já é pelo menos o da janta”, contemporiza. Antes de sumir pelo mesmo caminho que
apareceu, ele volta a falar das filhas. Diz que os olhos delas são duas bolas
verdes. “Pense nuns zolhim bonito os das minhas princesas”, diz Francisco, trinta e três anos, já
sem conseguir segurar as lágrimas.
Os olhos do Chico Doido também são verdes. Ainda que esverdeados de desesperança.
*
Pós-escrito: Texto que escrevi após o primeiro dia da oficina "Perfis: vidas que ensinam", ministrada na UFMA pelo professor Alexandre Maciel, do curso de Comunicação Social. O ideal seria eu participar dos três dias, mas imprevistos do trabalho só me permitiram participar de um. De todo modo produzi o perfil acima, muito embora baseado numa triste história que conheci ainda na noite de segunda.
Pós-escrito 2: Para não compremeter as fontes, as pessoas e os lugares descritos no texto foram grafados com nomes fictícios.
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Pós-escrito: Texto que escrevi após o primeiro dia da oficina "Perfis: vidas que ensinam", ministrada na UFMA pelo professor Alexandre Maciel, do curso de Comunicação Social. O ideal seria eu participar dos três dias, mas imprevistos do trabalho só me permitiram participar de um. De todo modo produzi o perfil acima, muito embora baseado numa triste história que conheci ainda na noite de segunda.
Pós-escrito 2: Para não compremeter as fontes, as pessoas e os lugares descritos no texto foram grafados com nomes fictícios.
4 comentários:
Foi importante você ter mencionado o fato de que viciado também tem história e personalidade, apesar de estar escondida sob um invólucro doente e socialmente renegado.
Muito bom, Luís!
Esqueci de mencionar que os nomes das pessoas e dos lugares são fictícios, mas as mesmas pessoas e lugares são reais.
Luís esteve no primeiro dia de oficina, muito atento e curioso. Fiquei sinceramente impactado com o seu texto quando o recebi. Mesmo não tendo formação em jornalismo, demonstrou um conhecimento sem par de várias técnicas (que, afinal, podem ser assimiladas facilmente por quem já tem o traquejo da leitura, como você). Seu texto destila uma humanidade sensível, encara aquele que é entendido como pária por muitos como um ser humano como os outros, digno de nossa atenção. Parabéns.
Professor Alexandre Maciel-coordenador do Projeto Perfis
Obrigado, Alexandre. Foi muito bom participar um pouquinho da oficina. Percebi em todos ali um iteresse muito sincero em fazer um jornalismo decente. Imperatriz só tem a ganhar com isso. Fico muito contente com essa nova safra que está saindo da UFMA. Muito mesmo. E seu ótimo trabalho nesse campo está sendo determinante. Parabéns.
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