sexta-feira, 10 de julho de 2009

BRINCANDO DE FURAR O MUNDO

Brincávamos um jogo chamado Boi. Primeiro no chão batido, antes do advento do asfalto, e depois de tal advento, no asfalto mesmo, que se mostrou muito melhor do que poderíamos imaginar. Uns tinham pião Potinho. Outros tinham Catatau. Todos se conheciam e se respeitavam. Meninos que viravam tensos adultos pra não perder o jogo. Sabedores do perigo do vacilo - ter o pião partido ao meio, o riso dos outros ecoando por infinitas semanas. E sem saber que um dia poderiam ler um belo texto sobre parte desse ritual. Um texto de alguém chamado Cristovão Tezza. Essa pequena obra-prima aí embaixo.
***

DA ARTE DE JOGAR PIÃO
Segura-se o pião com a mão esquerda, enquanto a direita enlaça-lhe o pescoço, sem dar nó, puxando a fieira verticalmente até a base da ponta de ferro, de onde voltará a subir em anéis apertados e unidos, feitos com carinho e atenção - da qualidade desta amarração dependerá o destino do lance, a sua parte técnica. É importante que o pião seja velho e o verniz esteja gasto pelo uso - na pele brilhante a fieira escorrega e o resultado é o desastre.

Chegando a fieira ao trecho bojudo, em torno da maior circunferência prende-se o último anel com o polegar enquanto a mão direita prepara o golpe, dando voltas na outra ponta como quem firma na palma um chicote improvisado, até que os dedos, livres mas tensos, segurem o pião, que é indócil, com delicadeza - o indicador na cabeça, o polegar na base. Concentrando-se, deve-se sustentar o pião com uma breve inclinação à direita (para compensar a puxada do chicote quando a peça cair no mundo), e erguer o braço lento e suave até a altura da orelha, não mais, que é exagero, nem menos, que é fraqueza. Fixa-se um ponto no chão e lança-se o pião um palmo além dele, como quem arremessa uma pedra para saltitar na água. (Se o jogador for canhoto, faça-se tudo ao espelho, que será o mesmo.)

O pião desenrola-se furioso no ar, mas isso não se verá; a puxada da fieira, percebe-se no tato, deve acontecer só no último segundo, quando quase desnecessária. Livre enfim, o pião procurará em desespero o seu ponto de equilíbrio, contra todas as provas da lógica, sob o olho de um furacão mesquinho que o quer ver no chão, mas ele não cai, absurdo. Se o chão for liso, como deve ser, o pião, apenas respirando, dormirá, absolutamente imóvel sobre a terra, um espetáculo de silêncio e uma aula impossível de geometria. Podemos sentir, sob o eixo estático, como a agulha de um aparelho metafísico, o tremor sutil da rotação do mundo.

Um comentário:

Iuri Petrus disse...

roda mundo roda-gigante
roda moinho roda pião
o tempo parou num instante!