“Chora, alma minha, sangra por minhas veias o veneno desse adeus”
Banda 40 Graus ao vivo em Pio XII (em ritmo de Arrocha)
Antes
O que é que eu tô fazendo da minha vida? Embarquei na Nova Sião pensando nisso e escutando umas musiquinhas tristes do Nei Lisboa e do Edvaldo Santana que não paravam de tocar dentro da minha cachola. O quê? Não abotoei o cinto de segurança, acomodei minha perna esquerda dolorida no vão das poltronas e lembrei do que o Darcy Ribeiro escreveu no prefácio dO Povo Brasileiro. "Não foi assim. Desencadeou-se sobre mim o vendaval da vida". Então não foi assim comigo também. E um vendaval similar ao que quase comeu de uma só vez o pulmão do Darcy me carregou de mala e cuia pro Amarante do Maranhão.
*
Em Amarante, mulheres jovens que têm pelo menos três filhos é coisa normal. Outra normalidade é o grande número de sendeiras, menos por opção e mais por não suportarem a violência doméstica. E o normal mais anormal dentre as amarantinas: aquelas que apesar de tudo isso - olho roxo, filhos aos quilos - ainda são extremamente conservadas de corpo, de rosto e de bunda. São tantas e tão corriqueiras que quando saímos à noite, ciceroneados pelo Zé Bocão, funcionaio ad-hoc da delegacia, a primeira coisa que perguntamos ao olhar uma mulher bonita é: "Zé, essa daí tem quantos meninos?" Ou: "Faz quanto tempo que essa daí tá sendeira?"
Mas há quem diga que tais amarantinas apanham todos os dias, tem pencas de filhos e desquitam rápido porque chifram muito os namorados, os maridos e os amantes, indiscriminadamente. Contaram-me dois casos exemplares envolvendo conhecidos moradores do município. O primeiro: fulano trabalhava a noite inteira e quando voltava pra casa, pela manhã, encontrava o lar doce lar todo desarrumado - sala, quarto, cozinha. Ao perguntar pra mulher o porquê da desarrumação, a resposta era que ela passara a noite com insônia, assistindo TV e comendo. Certa madrugada, abandonou o serviço e chegou de surpresa em casa. Mas a surpresa, na verdade, não foi ele chegar naquele horário. A surpresa foi encontrar um negão de dois metros de altura e dois palmos de pica dentro do seu quarto, mais precisamente em cima da sua mulher. O segundo: ciclano estava em casa assistindo a uma partida de futebol. Bateram na porta. Ele atendeu e o informaram que sua mulher estava praticamente desacordada em cima de uma carroça, bêbada e pelada, após ser fodida por cinco adolescentes. Ele não deu trela, bateu a porta na cara dos fofoqueiros e retornou pra frente da TV. O primeiro, que viu, pediu a separação; o segundo, que preferiu não ver, continua morando junto.
"Sim, mas e as histórias da delegacia?", devem estar se perguntando os meus cinco leitores. A verdade é que não há muito o que falar sobre a delegacia. O delegado viaja constantemente e as ocorrências são poucas. Quando muito, alguém denunciando o vizinho porque o jumento deste invadiu o quintal daquele. Gente reclamando da altura do som na residência de determinado aniversariante. Futricas de donas de casa porque seus filhinhos de seis anos brigaram no pátio da escola, próximo ao bebedouro central, mais precisamente a três metros do carrinho de pipoca do véi Antônio. Intimações em geral, enfim. Trabalhamos mesmo quando o delegado está por lá. Aí o bicho pega e o dia passa voando. Sem contar que o delega é uma figura. Quando não há ocorrência pra resolver, ele passa o tempo falando de boceta, cu e boquete. Ou então, no meio de uma conversa séria ao telefone, ele surpreende a interlocutora com uma dessas: “Olha, sacana, lava bem esse priquitin que hoje eu tô baixando por aí, viu?”.
No sábado ou domingo, chegaram uns amigos de Imperatriz -Iuri, Alcindo e Frabrício - com destino a uma aldeia das cercanias. Eles iam brincar de índio, mas antes passaram pela residência de moá. Convidei-os então para um programa de branco: comer carne assada numa churrasqueira elétrica, na cozinha da delegacia, um cômodo anexo à carceragem, na companhia dos PMs e de outros colegas da DP. Senti-me estranho: a gente se esbaldando com cada pedação de carne entre os dentes e os presos, coitados, só sentindo o cheiro. Terminado o churrasco, retornamos para a Casa Caju de Janeiro - é este o nome do nosso apê, inscrito em letras garrafais um pouco acima da porta - e tiramos aquela boa e velha soneca sob os 38 graus Celsius amarantinos. Mas os caras tinham que seguir pra aldeia. Na despedida, desejei boa viagem pra todos. Quando eles tavam saindo, entretanto, disse baixinho pra mim mesmo: “Vão simbora, bando de carniça”. E quando eles já tinham desaparecido, um PM me perguntou se o Fabrício tava com gripe suína. Eu disse que sim. Tava sim.
*
Depois
O que é que eu to fazendo da minha vida? Embarquei pensando nisso no Pajero do Dr Eliesio – advogado conhecido vulgarmente por Pescoço Duro - enquanto ouvia umas musiquinhas alegres que tocavam sem parar na FM do meu músculo bombeador de sangue. O quê? Abotoei o cinto de segurança, minha perna esquerda não doía sobre o banco de couro confortável do carrão e eu nem lembrei de Darcy Ribeiro, de prefácio, dO Povo Brasileiro, de vendaval, de nada. É que eu tava voltando numa aconchegante carona pra Imperatriz do Maranhão.
Banda 40 Graus ao vivo em Pio XII (em ritmo de Arrocha)
Antes
O que é que eu tô fazendo da minha vida? Embarquei na Nova Sião pensando nisso e escutando umas musiquinhas tristes do Nei Lisboa e do Edvaldo Santana que não paravam de tocar dentro da minha cachola. O quê? Não abotoei o cinto de segurança, acomodei minha perna esquerda dolorida no vão das poltronas e lembrei do que o Darcy Ribeiro escreveu no prefácio dO Povo Brasileiro. "Não foi assim. Desencadeou-se sobre mim o vendaval da vida". Então não foi assim comigo também. E um vendaval similar ao que quase comeu de uma só vez o pulmão do Darcy me carregou de mala e cuia pro Amarante do Maranhão.
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Em Amarante, mulheres jovens que têm pelo menos três filhos é coisa normal. Outra normalidade é o grande número de sendeiras, menos por opção e mais por não suportarem a violência doméstica. E o normal mais anormal dentre as amarantinas: aquelas que apesar de tudo isso - olho roxo, filhos aos quilos - ainda são extremamente conservadas de corpo, de rosto e de bunda. São tantas e tão corriqueiras que quando saímos à noite, ciceroneados pelo Zé Bocão, funcionaio ad-hoc da delegacia, a primeira coisa que perguntamos ao olhar uma mulher bonita é: "Zé, essa daí tem quantos meninos?" Ou: "Faz quanto tempo que essa daí tá sendeira?"
Mas há quem diga que tais amarantinas apanham todos os dias, tem pencas de filhos e desquitam rápido porque chifram muito os namorados, os maridos e os amantes, indiscriminadamente. Contaram-me dois casos exemplares envolvendo conhecidos moradores do município. O primeiro: fulano trabalhava a noite inteira e quando voltava pra casa, pela manhã, encontrava o lar doce lar todo desarrumado - sala, quarto, cozinha. Ao perguntar pra mulher o porquê da desarrumação, a resposta era que ela passara a noite com insônia, assistindo TV e comendo. Certa madrugada, abandonou o serviço e chegou de surpresa em casa. Mas a surpresa, na verdade, não foi ele chegar naquele horário. A surpresa foi encontrar um negão de dois metros de altura e dois palmos de pica dentro do seu quarto, mais precisamente em cima da sua mulher. O segundo: ciclano estava em casa assistindo a uma partida de futebol. Bateram na porta. Ele atendeu e o informaram que sua mulher estava praticamente desacordada em cima de uma carroça, bêbada e pelada, após ser fodida por cinco adolescentes. Ele não deu trela, bateu a porta na cara dos fofoqueiros e retornou pra frente da TV. O primeiro, que viu, pediu a separação; o segundo, que preferiu não ver, continua morando junto.
"Sim, mas e as histórias da delegacia?", devem estar se perguntando os meus cinco leitores. A verdade é que não há muito o que falar sobre a delegacia. O delegado viaja constantemente e as ocorrências são poucas. Quando muito, alguém denunciando o vizinho porque o jumento deste invadiu o quintal daquele. Gente reclamando da altura do som na residência de determinado aniversariante. Futricas de donas de casa porque seus filhinhos de seis anos brigaram no pátio da escola, próximo ao bebedouro central, mais precisamente a três metros do carrinho de pipoca do véi Antônio. Intimações em geral, enfim. Trabalhamos mesmo quando o delegado está por lá. Aí o bicho pega e o dia passa voando. Sem contar que o delega é uma figura. Quando não há ocorrência pra resolver, ele passa o tempo falando de boceta, cu e boquete. Ou então, no meio de uma conversa séria ao telefone, ele surpreende a interlocutora com uma dessas: “Olha, sacana, lava bem esse priquitin que hoje eu tô baixando por aí, viu?”.
No sábado ou domingo, chegaram uns amigos de Imperatriz -Iuri, Alcindo e Frabrício - com destino a uma aldeia das cercanias. Eles iam brincar de índio, mas antes passaram pela residência de moá. Convidei-os então para um programa de branco: comer carne assada numa churrasqueira elétrica, na cozinha da delegacia, um cômodo anexo à carceragem, na companhia dos PMs e de outros colegas da DP. Senti-me estranho: a gente se esbaldando com cada pedação de carne entre os dentes e os presos, coitados, só sentindo o cheiro. Terminado o churrasco, retornamos para a Casa Caju de Janeiro - é este o nome do nosso apê, inscrito em letras garrafais um pouco acima da porta - e tiramos aquela boa e velha soneca sob os 38 graus Celsius amarantinos. Mas os caras tinham que seguir pra aldeia. Na despedida, desejei boa viagem pra todos. Quando eles tavam saindo, entretanto, disse baixinho pra mim mesmo: “Vão simbora, bando de carniça”. E quando eles já tinham desaparecido, um PM me perguntou se o Fabrício tava com gripe suína. Eu disse que sim. Tava sim.
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Depois
O que é que eu to fazendo da minha vida? Embarquei pensando nisso no Pajero do Dr Eliesio – advogado conhecido vulgarmente por Pescoço Duro - enquanto ouvia umas musiquinhas alegres que tocavam sem parar na FM do meu músculo bombeador de sangue. O quê? Abotoei o cinto de segurança, minha perna esquerda não doía sobre o banco de couro confortável do carrão e eu nem lembrei de Darcy Ribeiro, de prefácio, dO Povo Brasileiro, de vendaval, de nada. É que eu tava voltando numa aconchegante carona pra Imperatriz do Maranhão.
12 comentários:
Cara, seja bem vindo!
Amarante do Mará! De tanto você, João e Felipe falarem desses confins quase me preparo para uma expedição. O patuá do delegado (boceta, cu e boquete) impagável!
Até!
Ass. Um dos cinco leitores.
Na hora, Natal. Baixando por lá é só procurar a Casa Caju de Janeiro. Amarante é uma puta linda das unhas pintadas de vermelho!
Muito boas tuas crônicas. Fogem do lugar comum e prendem o leitor do início ao fim.Sempre as leio. Pra mim são melhores do que Rubem Braga (que me perdoe o Departamento de Letras da UEMA)
Num festival literário você seria imbativel!
Já está na hora de pensar num livro! E, delegacia deve ser um prato cheio.
Teu trabalho tragi-cômico tem a
cara do nosso povo luso-afro-tupiniquim!!!
Muito bom!
prof.Magno
SEUS TEXTOS NOS ENCANTA, É DE UMA SIMPLICIDADE E AO MESMO TEMPO INEBRIA A NOSSA ALMA.
Perco o pouco juízo e do tempo que tenho lendo a porra dos teus textos. É de doer a mistura de sensação que invade o meu corpo e mente.
...Curiosa de conhecer o negão: dois metros de pica! Isso é um incentivo a um tour por Amarante. Ainda pra completar imagino as sendeiras que fizeram de seus homens, todos aptos a entrar no séu com sues belos e grandes chifres. Certamente é abundante a população machesca para o corneamento.
Agora, mesmo sabendo que tu fica feliz quando as visitas vão embora, eu men ligo.
Na minha primeira ida a Amarante, vou amarrar meu jegue na sombra do cajueiro que tá escrito para identificar tua morada!!!
Quanto a gripe suína do Fábricio! Faltou a panela pra essa trempe. Onde é que estava o Jhony a essa altura?
O melhor das visitas é que elas vão embora.
Dois palmos de pau é pau pra toda obra.
O chifre nasce na cabeça do homem pra torná-lo um animal menos indefeso.
O melhor das sendeiras é a senda.
O caju é de janeiro, eu do ano inteiro.
Qué vim vem.
O Jhony? O Jhony eu ouvi dizer que tá num cartório tentando mudar o nome pra João.
Muito bom o texto e mais ainda o poema acima...pena q não vivenciou a nossa saga à Amarante e à aldeia...teria ainda mais histórias bizarras a contar, como o Aiô levando pressão no pátio pq nunca pagou um gado!!!
Não sei se sou um dos cinco ou se sou o sexto.
Tenho quase certeza de que você é o bissexto.
Luis tu tá uma verdadeira tia de calçada...pouta que pariu só fofoca do amarante!!!! ainda te exaltam como escritor, era só o que me faltava!!!
E você tá um(a) verdadeiro(a) anônimo(a) de blogue. E ainda te exaltam como comentarista. Puta que pariu! Era só o que me faltava...
o impagável mesmo foi chegar a essa residências as 7 da manhã, se deparar com um luis de olhos vermelhos, recém acordados, dizendo: "Ainda tô bêbo".
Amarantinos ainda hão de me agradecer por democratizar a gripe suína! Ah sim, vamos colocar Amarante e suas mulheres (sem dentes, nem corações) no mapa!
Porra! Que maravilha de texto...
Descrição impecável de nosso dia-a-dia...
Bocetas, cus... etc e tal
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