segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

DESPERATE CRY

Tarde de sexta. Abro a porta da DP para a rua, para o calor mormacento das cinco e cinquenta da tarde, para os carros, seus nocivos gases. Avanço para o final do apocalipse diário pondo os fones de ouvido.Tenho pressa de suprimir vozes por riffs, baixos aditivados, pratos de bateria em estilhaços, e finalmente chegar em casa.

 Me arrasto imerso na fuligem da calçada, na penumbra, e percebo, à minha esquerda, imersas na mesma penumbra e nos mesmos gases, silhuetas de mulheres da periferia. Percebo que conversam acaloradas, sobre coisa séria e dolorosa.

Todas parecem gritar, granir, rir. Uma delas fala:

- A família dele mata e chupa o sangue! Eu tenho é medo!

Neste momento emerge, entre vossos ventres, voz máscula, de vocabulário chulo, vaqueiro da cidade:

- Como é que é, muié! – no que ouço, junto com sua voz, o estampido de um espalmar de mãos contra a parede da DP.

A comemoração do lamento – penso, enquanto escolho uma música – é menos incrédula do que estranha, porque o bizarro do fato a sustenta: há de se respeitar a gargalhada de quem, imerso no desespero, ouviu algo horrível num diálogo festivo, ou algo festivo num diálogo horrível, pois, se a festa não suprime a dor, mal ela não faz.

- E por que tu num disse isso. Por que tu disdisse tudo? Rum! Amanhã num venho mais não, carái! – diz uma terceira voz, fina, raquítica, da corcundinha loura.

Sigo. Por um instante penso nas imagens que me ficaram de 2018. Uma mulher sentada numa cadeira, imóvel, com um tiro na cabeça. Uma mulher abraçada ao filho morto. Uma mulher com a cara lacerada de facão.

Ando e, ao passo que defino a música e surgem seus primeiros riffs, persistem, como um grito longínquo, os risos, as gaitadas, outro tapa na parede, sons inconveniente que que lutam e se misturam com o thrash metal, mesmo eu aumentando o volume e Max gritando cavernoso, com toda a força de seus vinte e poucos anos:

- “Sacrifice is pleasure / When life ends in pain…”

Nenhum comentário: