domingo, 24 de março de 2013

INDO PRA AMARANTE NUM ÔNIBUS DA VBL

O motorista tenta pela sexta vez, mas não consegue nada. O máximo que ouvimos é um ruído que lembra um estrebucho, um grito abafado, o ronco de um moribundo na enfermaria de um hospital. O motorista enfim desiste, levanta-se suado (a calva principalmente), e, esticando muito as pernas para poder passar por cima do velho motor do Mercedes, diz: “Vamo ter que descer, pessoal. Esperar o outro que tá vindo aí atrás.” Aliviados por poder deixar o ambiente sem janelas e sem refrigeração, mas também contrariados por ter que esperar nova condução, os passageiros da Viação Branca do Leste recolhem suas bagagens e vão descendo aos poucos, em fila indiana, bufando, resmungando, até encontrarem-se todos do lado de fora do ônibus, às margens da rodovia Ma-122, entre os municípios de Senador La Roque e Buritirana. São nove horas da manhã e não existe nenhuma sombra às margens da estrada sem acostamento, exceto a que foi projetada pelo próprio ônibus quebrado, no exíguo espaço entre este e a alta vegetação do local. Humilhação das humilhações, é a esta sombra que os passageiros tem de recorrer se quiserem se proteger do seco sol de agosto (1). Eu e o sargento Paulo preferimos ficar no lado oposto da rodovia, expostos às intempéries, fumando e rindo com bastante raiva. “Pode ser que a gente pegue uma carona aqui desse lado”, disse o sargento, devolvendo-me o isqueiro (2).

Convenhamos que não é sempre que o ônibus quebra – às vezes ele apenas “atrasa”. O horário previsto da primeira viagem para Amarante são seis da manhã. Dez pras seis, já estamos na agência da empresa – rua Maranhão com rua Aquiles Lisboa –, eu e outros dez passageiros ávidos para embarcar no que quer que seja. Às vezes, devido a demora, alguém vai até o guichê e pergunta para a funcionária o motivo do atraso. Mal humorada e irônica – afinal é nela que os passageiros descontam o mal estar gerado pela concessionária do transporte intermunicipal –, a mulher sempre resmunga alguma coisa que receio entender por “eles estão apenas tentando consertar a buzina” ou “estão trocando um pneu totalmente careca por outro que está fazendo tratamento capilar com Hair Sink Fresk”. Nesses minutos de espera, o que se vê são as pessoas caminhando impacientes pela calçada enquanto manuseiam seus celulares ou olham seus relógios de pulso. Geralmente eu procuro abstrair, e estava pensando em trazer bolhas de plástico na próxima vez para estourá-las com o sol raiando, quando, para o espanto de todos, vindo na contramão da rua Aquiles Lisboa, aparece o ônibus da VBL.

O motorista infrator de trânsito (3) é um que já conheço. Baixinho e sempre sorridente, tem um aspecto bizarro: o rosto é de um menino de treze anos (um menino calvo); o corpo, de um homem de quarenta. É uma aparência realmente estranha, tão estranha quanto a do cobrador, uma magricela que lembra o jabuti fora do casco de algum desenho animado da Hanna-Barbera. Os dois conversam sempre (4), e são exímios piadistas, fazem piada sobre tudo, os mais esdrúxulos temas, embora sempre regressem para a clássica piada de conteúdo homofóbico (talvez, aliás, o tipo predileto de piada de todos os motoristas e cobradores do mundo). Como não podia ser diferente, o motorista é daqueles que corre muito, pisa fundo no pedal. Às vezes, no trecho menos esburacado entre Buritirana e Amarante, desenvolve mais 100 km por hora. Já percebi que ele gosta particularmente de passar veloz numa determinada curva. Uma curva aberta, sem buracos, mas não menos perigosa que qualquer outra curva de qualquer outra estrada. Já percebi que eu também gosto da emoção de passar veloz naquela curva, sentir o friozinho na barriga ao imaginar o ônibus quase perdendo o controle, quase saindo da estrada. Nessas horas, invariavelmente, penso como seria minha reação diante de um capotamento. O ônibus deslizando na curva, as pessoas gritando, bagagens caindo sobre as nossas cabeças, e finalmente o capotamento – três vezes, até o Mercedes parar, amassado, com os pneus para cima. Imagino então eu me arrastando entre as ferragens, achando a janela de emergência, saindo pra respirar um pouco e depois, ensanguentado, retornando pra dentro do ônibus e salvando diversas pessoas antes do veículo finalmente explodir. Eu imagino isso durante o período de uma curva e me sinto um fugaz herói de rede nacional.

De Imperatriz para Amarante o ônibus faz muitas paradas. A primeira delas é no terminal rodoviário, ondem outros passageiros e encomendas são embarcados e o ônibus é fiscalizado pela própria empresa. Quando enfim atingimos o inicio da Avenida Pedro Neiva de Santana, já decorreram mais de trinta minutos desde a saída da agência da VBL, localizada no bairro Mercadinho. Antes de chegar em João Lisboa, temos mais paradas para embarque de mais passageiros e mais encomendas, e assim durante toda a viagem, a cada povoado ou mesmo em trechos despovoados, quando passageiros retardatários acompanham o ônibus nas garupas de moto-taxis. Há de se frisar também que existem as paradas previamente agendadas para a alimentação – café da manhã, almoço ou janta, dependendo do horário. Em Buritirana, o local escolhido é uma lanchonete localizada ao lado da praça central. Muitos comem por lá, em pé, encostados no balcão; outros preferem comprar os alimentos e comê-los dentro do ônibus. Esses últimos, saciada a fome, abrem as janelas e jogam o lixo fora: embalagens de picolé, latas de refrigerante, restos de pasteis envoltos por guardanapos engordurados, e até cocos da praia que quicam no asfalto até encontrar o seu lugar ao sol, à beira da rodovia. Também há se frisar que antes de Buritirana existe outra parada, e esta é a preferida da tripulação a que me refiro neste artigo. Fica numa pequena localidade denominada Ingarana (5), um lugar de poucas casas mas com consideráveis banquinhas familiares que vendem, predominantemente, espigas de milho assado e cozido e caldo de cana de açúcar. Nesta parada, a tripulação se esbalda: o menino de quarenta anos e o jabuti fora do casco sempre comem duas espigas de milho cada um, uma cozida e outra assada. Enquanto um come a assada, debulhando-a, o outro morde a cozida, e a morde com tanta força de vontade que às vezes penso que lascas do sabugo também são deglutidas. De quebra, emborcam um copão de caldo de cana, num repente, sem tirá-lo da boca, formando os dois uma estranha sincronia. Quando terminam, o menino e o jabuti retornam para dentro do ônibus sem sequer avisar os passageiros. Se não ficamos atentos às acelerações desnecessárias do veículo (deve ser esta a forma que escolheram para avisar que o ônibus está partindo), corremos o risco de ficar pra trás.

Os passageiros do ônibus são, em geral, pessoas que moram em Amarante. Há também os que moram nos outros municípios entre Imperatriz e aquela cidade (João Lisboa, Senador La Roque e Buritirana), além dos que residem nos diversos povoados existentes no percurso. O resto é composto de pessoas que vão para Amarante a trabalho – vendedores, profissionais liberais, pequenos gatunos, professores, policiais (6), etc. Quando comecei a fazer esse percurso, desconfiado que sou (temia acontecer um assalto), passei por um dilema: sentar no fundo do ônibus ou na frente? No caso de um assalto (7), qual seria o lugar menos perigoso? Se sentasse nas últimas poltronas, temia ser de pronto reconhecido pela sagacidade do assaltante, visto que, via de regra, é essa parte do ônibus que os policiais preferem ocupar; se sentasse nos bancos da frente, temia que a mesma sagacidade do mesmo assaltante deduzisse que o sujeito barbudo, de óculos e boné sentado logo na primeira fila era na verdade o filho da puta de um policial que, estando num lugar atípico para a “classe dos policiais”, na ala geralmente ocupada por “passageiros comuns”, tentava passar-se despercebido enquanto aguardava de forma sub-reptícia a pronúncia da célebre frase “Isso é um assalto!”. Avaliando prós e contras, optei por, no final, sentar nas ultimas poltronas.

A enorme quantidade de quebra-molas da MA-122 e a situação precaríssima da sua capa asfáltica estão, de certa forma, ligados ao péssimo estado do ônibus. Um dia, decidi contar a quantidade de lombadas, mas, quando o ônibus do tipo “Executive Class” passou por uma das tantas (8), fui jogado para o alto e bati a cabeça contra o teto do veículo. Mesmo não tendo quebrado o pescoço, perdi a contagem das lombadas (9) e de imediato procurei, ainda que em vão, o cinto de segurança. Nada justifica os péssimos ônibus (10) da Viação Branca do Leste, mas é realmente difícil manter um automóvel em condições plenas de trafegabilidade dispondo de uma rodovia assim. Certa vez, indo à noite de moto para Amarante, um policial militar foi surpreendido por uma cratera que havia comido metade da pista. Chovia, não havia sinalização nem iluminação. Tragado pelo buraco, o policial não conseguia sair debaixo da moto. Uma forte correnteza barrenta tirava-lhe o fôlego e o impossibilitava de gritar por socorro. Não fosse a ajuda de outros condutores que o perceberam ao passar pelo local, o policial havia morrido afogado. Noutro caso, um rapaz que estava indo para um culto evangélico em Amarante foi surpreendido numa curva por um caminhão da Coca Cola. Sua massa cefálica e pedaços do osso da sua canela espalhados pelo asfalto deixavam claro a morte imediata. Caso não houvesse um buraco na via do caminhoneiro, ele não teria avançado a contramão e o rapaz não teria sido atropelado. Certamente nenhum dos familiares, seja do policial ou do rapaz, entrou com qualquer tipo ação indenizatória. Se todos os acidentados ou os parentes dos mortos na MA-122 entrassem na justiça contra o governo, em pouco tempo, pra evitar mais gastos do tipo, o Estado não só recapearia a estrada, mas a alargaria e a iluminaria.

Enquanto nada muda, o ônibus da VBL continua demorando quase quatro horas (11) para percorrer os 110 km que separam Imperatriz de Amarante. Certamente, nem o juiz, nem o promotor, nem a prefeita daquela cidade costumam fazer esse trajeto. Se o fizessem, pelo menos desembarcariam como nós – com o corpo se contorcendo de dor e a necessidade premente de passar no mínimo uma hora deitado sobre um colchão d’água.


NOTAS

(1) Para o observador externo que passasse àquela hora pelo local, a impressão que calharia melhor seria a de que as pessoas estariam embarcando no ônibus, como se fossem alegres residentes das cercanias entrando num transporte público de qualidade, e não o contrario, passageiros fatigados à espera de uma baldeação. 

(2) De fato, pouco tempo depois conseguimos uma. Ao nos reconhecer à beira da estrada, um médico de Amarante nos fez adentrar no seu veículo luxuoso, perfumado, que mais parecia a nave da Xuxa. Quando nos aproximávamos da entrada da cidade, a nave da Xuxa colheu um idoso que atravessava a rodovia de forma imprudente e o jogou uns três metros para o alto. O homem morreu na hora e a nave, desgovernada, rodopiou quatro ou cinco vezes antes de bater num carro de boi carregado de barro e parar junto a uma cerca com o motor esfumaçando. Graças aos seus vigorosos “air bags” e a sua performance segura ao derrapar pelo asfalto, saímos apenas com escoriações leves (afinal, a nave não capotou). Lembro que ao descer do carro, pernas bambas ainda, a primeira coisa que o sargento Paulo me disse foi: “Me arruma teu isqueiro aí, barbudão.

(3) Consta que cada motorista é obrigado a fazer quatro viagens por dizia. Isso é desumado. Neste ritmo, além atropelar todas as normas de trânsito, em pouco tempo estarão todos eles herniados.

(4) O estranho é que apesar de conversarem sempre, conversam apenas entre eles mesmos. Com os passageiros, falam somente quando provocados e apenas o indispensável. Suponho que tal comportamento arredio deve envolver, necessariamente, alguma aura que eles julgam importante. É como se evitassem contato conosco por se considerarem superiores. E é como se se considerassem superiores pelo simples fato de serem o motorista e o cobrador do ônibus.

(5) Ingarana, segundou me informou a vendedora de caldo de cana, é uma árvore típica de nossa região.

(6) Há uma espécie de política de boa vizinhança entre a Viação Branca do Leste e as forças de segurança locais que desobriga a nós, policias civis ou militares, a pagar passagem. Basta mostrar a carteira funcional ou, quando já conhecido, nem isso. No meu caso, mesmo eu já estando há um bom tempo embarcando no ônibus das seis da manhã, o cobrador sempre perguntava: “O senhor já tirou passagem?”. Naturalmente, era só eu mostra-lhe o distintivo de investigador que ele meneava a cabeça, satisfeito. Reconheço que me identificava com certa mágoa, já que tinha certeza de que ele tinha certeza que eu era policial. Ora, entre todos os “canas”, por que não lembrava apenas de mim? Penso que, no final das contas, ele fingia desconhecer-me porque me escolhera para tripudiar (ainda que de forma genérica) a força repressiva do Estado (molestando o seu agente).

(7) Felizmente, na linha Imperatriz/Amarante/Imperatriz não há ocorrência de assaltos.

(8) Alguns são tão estreitos e altos que carros pequenos, mesmo atravessando-os da forma mais “atravessada” possível, geralmente ficam presos nos seus cumes, com as quatro rodas suspensas.

(9) Certamente, o número de quebra-molas está na casa de uma centena ou mais.

(10) No encosto da poltrona à minha frente, lê-se os seguintes rabiscos à caneta distribuídos de forma esparsa: “Fabiola boqueteira” (e, logo abaixo, o suposto telefona da moça), “Palmas - TO”, “Ide a todo mundo e pregai” e “Galera do 3 Ano A, a melhor [ininteligível] ”; no corredor do ônibus, lixo orgânico e inorgânico; nos vidros das janelas, adesivos com comercias de auto-escolas, pedaços de chiclete ressequido e, no mesmo estado, pequenas bolas de algo que julgo ser meleca de nariz; no lado de fora, cheiro de borracha queimada; nos assentos, manchas encardidas; no ônibus todo, cheiro de mofo.

(11) Imagine passar todo o tempo desse percurso ao lado do Nanny Viera. Imaginou?



Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei muitíssimo!