O motorista tenta pela sexta vez, mas não consegue nada. O
máximo que ouvimos é um ruído que lembra um estrebucho, um grito abafado, o
ronco de um moribundo na enfermaria de um hospital. O motorista enfim desiste,
levanta-se suado (a calva principalmente), e, esticando muito as pernas para
poder passar por cima do velho motor do Mercedes, diz: “Vamo ter que descer, pessoal.
Esperar o outro que tá vindo aí atrás.” Aliviados por poder deixar o ambiente
sem janelas e sem refrigeração, mas também contrariados por ter que esperar
nova condução, os passageiros da Viação Branca do Leste recolhem suas bagagens
e vão descendo aos poucos, em fila indiana, bufando, resmungando, até
encontrarem-se todos do lado de fora do ônibus, às margens da rodovia Ma-122,
entre os municípios de Senador La Roque e Buritirana. São nove horas da manhã e
não existe nenhuma sombra às margens da estrada sem acostamento, exceto a que
foi projetada pelo próprio ônibus quebrado, no exíguo espaço entre este e a
alta vegetação do local. Humilhação das humilhações, é a esta sombra que os
passageiros tem de recorrer se quiserem se proteger do seco sol de agosto (1). Eu e o sargento Paulo preferimos
ficar no lado oposto da rodovia, expostos às intempéries, fumando e rindo com
bastante raiva. “Pode ser que a gente pegue uma carona aqui desse lado”, disse
o sargento, devolvendo-me o isqueiro (2).
Convenhamos que não é sempre que o ônibus quebra – às vezes
ele apenas “atrasa”. O horário previsto da primeira viagem para Amarante são
seis da manhã. Dez pras seis, já estamos na agência da empresa – rua Maranhão
com rua Aquiles Lisboa –, eu e outros dez passageiros ávidos para embarcar no
que quer que seja. Às vezes, devido a demora, alguém vai até o guichê e
pergunta para a funcionária o motivo do atraso. Mal humorada e irônica – afinal
é nela que os passageiros descontam o mal estar gerado pela concessionária do
transporte intermunicipal –, a mulher sempre resmunga alguma coisa que receio
entender por “eles estão apenas tentando consertar a buzina” ou “estão trocando
um pneu totalmente careca por outro que está fazendo tratamento capilar com
Hair Sink Fresk”. Nesses minutos de espera, o que se vê são as pessoas
caminhando impacientes pela calçada enquanto manuseiam seus celulares ou olham
seus relógios de pulso. Geralmente eu procuro abstrair, e estava pensando em
trazer bolhas de plástico na próxima vez para estourá-las com o sol raiando,
quando, para o espanto de todos, vindo na contramão da rua Aquiles Lisboa,
aparece o ônibus da VBL.
O motorista infrator de trânsito (3) é um que já conheço. Baixinho e sempre sorridente, tem um
aspecto bizarro: o rosto é de um menino de treze anos (um menino calvo); o
corpo, de um homem de quarenta. É uma aparência realmente estranha, tão
estranha quanto a do cobrador, uma magricela que lembra o jabuti fora do casco
de algum desenho animado da Hanna-Barbera. Os dois conversam sempre (4), e são exímios piadistas, fazem
piada sobre tudo, os mais esdrúxulos temas, embora sempre regressem para a
clássica piada de conteúdo homofóbico (talvez, aliás, o tipo predileto de piada
de todos os motoristas e cobradores do mundo). Como não podia ser diferente, o
motorista é daqueles que corre muito, pisa fundo no pedal. Às vezes, no trecho
menos esburacado entre Buritirana e Amarante, desenvolve mais 100 km por hora.
Já percebi que ele gosta particularmente de passar veloz numa determinada
curva. Uma curva aberta, sem buracos, mas não menos perigosa que qualquer outra
curva de qualquer outra estrada. Já percebi que eu também gosto da emoção de
passar veloz naquela curva, sentir o friozinho na barriga ao imaginar o ônibus
quase perdendo o controle, quase saindo da estrada. Nessas horas,
invariavelmente, penso como seria minha reação diante de um capotamento. O
ônibus deslizando na curva, as pessoas gritando, bagagens caindo sobre as
nossas cabeças, e finalmente o capotamento – três vezes, até o Mercedes parar,
amassado, com os pneus para cima. Imagino então eu me arrastando entre as
ferragens, achando a janela de emergência, saindo pra respirar um pouco e
depois, ensanguentado, retornando pra dentro do ônibus e salvando diversas
pessoas antes do veículo finalmente explodir. Eu imagino isso durante o período
de uma curva e me sinto um fugaz herói de rede nacional.
De Imperatriz para Amarante o ônibus faz muitas paradas. A
primeira delas é no terminal rodoviário, ondem outros passageiros e encomendas
são embarcados e o ônibus é fiscalizado pela própria empresa. Quando enfim
atingimos o inicio da Avenida Pedro Neiva de Santana, já decorreram mais de
trinta minutos desde a saída da agência da VBL, localizada no bairro
Mercadinho. Antes de chegar em João Lisboa, temos mais paradas para embarque de
mais passageiros e mais encomendas, e assim durante toda a viagem, a cada
povoado ou mesmo em trechos despovoados, quando passageiros retardatários
acompanham o ônibus nas garupas de moto-taxis. Há de se frisar também que
existem as paradas previamente agendadas para a alimentação – café da manhã,
almoço ou janta, dependendo do horário. Em Buritirana, o local escolhido é uma
lanchonete localizada ao lado da praça central. Muitos comem por lá, em pé,
encostados no balcão; outros preferem comprar os alimentos e comê-los dentro do
ônibus. Esses últimos, saciada a fome, abrem as janelas e jogam o lixo fora:
embalagens de picolé, latas de refrigerante, restos de pasteis envoltos por
guardanapos engordurados, e até cocos da praia que quicam no asfalto até
encontrar o seu lugar ao sol, à beira da rodovia. Também há se frisar que antes
de Buritirana existe outra parada, e esta é a preferida da tripulação a que me
refiro neste artigo. Fica numa pequena localidade denominada Ingarana (5), um lugar de poucas casas mas com
consideráveis banquinhas familiares que vendem, predominantemente, espigas de
milho assado e cozido e caldo de cana de açúcar. Nesta parada, a tripulação se
esbalda: o menino de quarenta anos e o jabuti fora do casco sempre comem duas
espigas de milho cada um, uma cozida e outra assada. Enquanto um come a assada,
debulhando-a, o outro morde a cozida, e a morde com tanta força de vontade que
às vezes penso que lascas do sabugo também são deglutidas. De quebra, emborcam
um copão de caldo de cana, num repente, sem tirá-lo da boca, formando os dois uma
estranha sincronia. Quando terminam, o menino e o jabuti retornam para dentro
do ônibus sem sequer avisar os passageiros. Se não ficamos atentos às
acelerações desnecessárias do veículo (deve ser esta a forma que escolheram
para avisar que o ônibus está partindo), corremos o risco de ficar pra trás.
Os passageiros do ônibus são, em geral, pessoas que moram em
Amarante. Há também os que moram nos outros municípios entre Imperatriz e
aquela cidade (João Lisboa, Senador La Roque e Buritirana), além dos que
residem nos diversos povoados existentes no percurso. O resto é composto de
pessoas que vão para Amarante a trabalho – vendedores, profissionais liberais,
pequenos gatunos, professores, policiais (6),
etc. Quando comecei a fazer esse percurso, desconfiado que sou (temia acontecer
um assalto), passei por um dilema: sentar no fundo do ônibus ou na frente? No
caso de um assalto (7), qual seria o
lugar menos perigoso? Se sentasse nas últimas poltronas, temia ser de pronto
reconhecido pela sagacidade do assaltante, visto que, via de regra, é essa
parte do ônibus que os policiais preferem ocupar; se sentasse nos bancos da
frente, temia que a mesma sagacidade do mesmo assaltante deduzisse que o sujeito
barbudo, de óculos e boné sentado logo na primeira fila era na verdade o filho
da puta de um policial que, estando num lugar atípico para a “classe dos
policiais”, na ala geralmente ocupada por “passageiros comuns”, tentava
passar-se despercebido enquanto aguardava de forma sub-reptícia a pronúncia da
célebre frase “Isso é um assalto!”. Avaliando prós e contras, optei por, no
final, sentar nas ultimas poltronas.
A enorme quantidade de quebra-molas da MA-122 e a situação
precaríssima da sua capa asfáltica estão, de certa forma, ligados ao péssimo
estado do ônibus. Um dia, decidi contar a quantidade de lombadas, mas,
quando o ônibus do tipo “Executive Class” passou por uma das tantas (8), fui jogado para o alto e bati a
cabeça contra o teto do veículo. Mesmo não tendo quebrado o pescoço, perdi a
contagem das lombadas (9) e de
imediato procurei, ainda que em vão, o cinto de segurança. Nada justifica os
péssimos ônibus (10) da Viação Branca
do Leste, mas é realmente difícil manter um automóvel em condições plenas de
trafegabilidade dispondo de uma rodovia assim. Certa vez, indo à noite de moto
para Amarante, um policial militar foi surpreendido por uma cratera que havia
comido metade da pista. Chovia, não havia sinalização nem iluminação. Tragado
pelo buraco, o policial não conseguia sair debaixo da moto. Uma forte
correnteza barrenta tirava-lhe o fôlego e o impossibilitava de gritar por
socorro. Não fosse a ajuda de outros condutores que o perceberam ao passar pelo
local, o policial havia morrido afogado. Noutro caso, um rapaz que estava indo
para um culto evangélico em Amarante foi surpreendido numa curva por um
caminhão da Coca Cola. Sua massa cefálica e pedaços do osso da sua canela
espalhados pelo asfalto deixavam claro a morte imediata. Caso não houvesse um buraco
na via do caminhoneiro, ele não teria avançado a contramão e o rapaz não teria
sido atropelado. Certamente nenhum dos familiares, seja do policial ou do
rapaz, entrou com qualquer tipo ação indenizatória. Se todos os acidentados ou
os parentes dos mortos na MA-122 entrassem na justiça contra o governo, em
pouco tempo, pra evitar mais gastos do tipo, o Estado não só recapearia a
estrada, mas a alargaria e a iluminaria.
Enquanto nada muda, o ônibus da VBL continua demorando quase
quatro horas (11) para percorrer os
110 km que separam Imperatriz de Amarante. Certamente, nem o juiz, nem o promotor,
nem a prefeita daquela cidade costumam fazer esse trajeto. Se o fizessem, pelo
menos desembarcariam como nós – com o corpo se contorcendo de dor e a
necessidade premente de passar no mínimo uma hora deitado sobre um colchão
d’água.
NOTAS
(1) Para o observador externo que passasse àquela
hora pelo local, a impressão que calharia melhor seria a de que as pessoas
estariam embarcando no ônibus, como se fossem alegres residentes das cercanias
entrando num transporte público de qualidade, e não o contrario, passageiros
fatigados à espera de uma baldeação.
(2) De fato,
pouco tempo depois conseguimos uma. Ao nos reconhecer à beira da estrada, um
médico de Amarante nos fez adentrar no seu veículo luxuoso, perfumado, que mais
parecia a nave da Xuxa. Quando nos aproximávamos da entrada da cidade, a nave
da Xuxa colheu um idoso que atravessava a rodovia de forma imprudente e o jogou
uns três metros para o alto. O homem morreu na hora e a nave, desgovernada,
rodopiou quatro ou cinco vezes antes de bater num carro de boi carregado de
barro e parar junto a uma cerca com o motor esfumaçando. Graças aos seus vigorosos
“air bags” e a sua performance segura ao derrapar pelo asfalto, saímos apenas
com escoriações leves (afinal, a nave não capotou). Lembro que ao descer do
carro, pernas bambas ainda, a primeira coisa que o sargento Paulo me disse foi:
“Me arruma teu isqueiro aí, barbudão.
(3) Consta que
cada motorista é obrigado a fazer quatro viagens por dizia. Isso é desumado. Neste
ritmo, além atropelar todas as normas de trânsito, em pouco tempo estarão todos
eles herniados.
(4) O estranho é
que apesar de conversarem sempre, conversam apenas entre eles mesmos. Com os
passageiros, falam somente quando provocados e apenas o indispensável. Suponho
que tal comportamento arredio deve envolver, necessariamente, alguma aura que
eles julgam importante. É como se evitassem contato conosco por se considerarem
superiores. E é como se se considerassem superiores pelo simples fato de serem
o motorista e o cobrador do ônibus.
(5) Ingarana,
segundou me informou a vendedora de caldo de cana, é uma árvore típica de nossa
região.
(6) Há uma espécie
de política de boa vizinhança entre a Viação Branca do Leste e as forças de
segurança locais que desobriga a nós, policias civis ou militares, a pagar
passagem. Basta mostrar a carteira funcional ou, quando já conhecido, nem isso.
No meu caso, mesmo eu já estando há um bom tempo embarcando no ônibus das seis
da manhã, o cobrador sempre perguntava: “O senhor já tirou passagem?”. Naturalmente,
era só eu mostra-lhe o distintivo de investigador que ele meneava a cabeça,
satisfeito. Reconheço que me identificava com certa mágoa, já que tinha certeza
de que ele tinha certeza que eu era policial. Ora, entre todos os “canas”, por
que não lembrava apenas de mim? Penso que, no final das contas, ele fingia desconhecer-me
porque me escolhera para tripudiar (ainda que de forma genérica) a força
repressiva do Estado (molestando o seu agente).
(7) Felizmente,
na linha Imperatriz/Amarante/Imperatriz não há ocorrência de assaltos.
(8) Alguns são
tão estreitos e altos que carros pequenos, mesmo atravessando-os da forma mais
“atravessada” possível, geralmente ficam presos nos seus cumes, com as quatro
rodas suspensas.
(9) Certamente, o
número de quebra-molas está na casa de uma centena ou mais.
(10) No encosto
da poltrona à minha frente, lê-se os seguintes rabiscos à caneta distribuídos
de forma esparsa: “Fabiola boqueteira” (e, logo abaixo, o suposto telefona da
moça), “Palmas - TO”, “Ide a todo mundo e pregai” e “Galera do 3 Ano A, a melhor
[ininteligível] ”; no corredor do ônibus, lixo orgânico e inorgânico; nos
vidros das janelas, adesivos com comercias de auto-escolas, pedaços de chiclete
ressequido e, no mesmo estado, pequenas bolas de algo que julgo ser meleca de
nariz; no lado de fora, cheiro de borracha queimada; nos assentos, manchas encardidas;
no ônibus todo, cheiro de mofo.
(11) Imagine
passar todo o tempo desse percurso ao lado do Nanny Viera. Imaginou?
Um comentário:
Gostei muitíssimo!
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