segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

PIQUENIQUE

Eles chegaram na hora marcada para o piquenique. Devagar, os três homens e as três mulheres escolheram o gramado abaixo da frondosa árvore e lá estenderam as suas toalhas de cores discretas. Estavam na beira do rio - um belo rio num fim de tarde. Dali a poucos minutos o dia começaria a acabar: sinal de que o horizonte ficaria um pouco amarelado e uma brisa saliente sopraria os cabelos das crianças que brincavam no parquinho infantil.

Depois de tudo bem disposto, cada coisa em seu lugar, eles se sentaram e começaram a esvaziar as cestas. Utilizando suas mãos pequeninas e delicadas, uma das mulheres acomodou uma cabeça de porco sobre as toalhas. Uma cabeça putrefata, cheia de vermes. "Uma cabeça de porco realmente horrenda", ela disse. "Horrenda certamente, porém aparenta estar deliciosa", comentou um dos homens, enquanto retirava da sua cesta um sacola repleta de peixes. Peixes podres e fedorentos. Vera, a viúva, depositou uma vasilha com alguns furúnculos sobre a toalha e perguntou ao Ari:

“O que você trouxe, Limpa Fossa? Não decepcione nosso paladar.”

“Trouxe cabecinhas de frango que recolhi na Apil. Sei que não é muita coisa, mas garanto a péssima qualidade da granja.”

“Eu ia trazer aquela perna amputada que prometi”, retorquiu Alfredo, ajeitando o seu guardanapo, “mas o zelador do hospital que iria desvia-la para mim, infelizmente está gosando férias trabalhistas. Mas do mês que vem não passa. Garanto.”

“Falando em Hospital”, interrompeu o office-boy, “lembrei do IML. Tenho um contato lá dentro que cobra baratinho pra descolar um presunto pra gente.”

“Um presunto? Nossa, faz um bom tempo que a gente não deglute uma vítima de acidente automobilístico ou um suicida de prédio de quinze andares.”

“Vai um pulmalzinho de fumante aí, gente?”, perguntou Lúcia, a professora, após desembrulhar o órgão do sistema respiratório. “Ainda tá fresquinho e bem esponjoso.”

O piquenique transcorreu tranquilo. As cabecinhas de frango foram aos poucos sendo trituradas pelos dentes afiados dos comensais. Alfredo preparava pequenas fatias de pulmão com furúnculo e as distribuía aos outros. Lúcia de imediato batizou a invenção de Alfredo de “Plus Pus Enfisema”. A cabeça de porco, mais cobiçada, foi disputada pedaço por pedaço.

“Essa cabeça está divina”, disse Cléia.

“Os olhinhos estão deliciosos.”

“Me passa um pedaço do focinho, Limpa Fossa, por favor.”

“Aliás, Ari, por que o apelido 'Limpa Fossa'?”

Ainda com fatias de pulmão cancerígeno fora da boca, Ari respondeu:

“É da época que eu trabalhava como zelador de banheiros públicos. Eu quebrava as descargas para as fezes não descerem. Então elas iam acumulando nos vasos, formando montanhas de tolete de cheiro maravilhoso. No final do dia, eu entrava no banheiro com meu material de limpeza (que não era vassoura nem sabão, lógico; era a língua!) e limpava tudo, quer dizer, comia tudo. Posso garantir que provei todo tipo de bosta!”

Todos riram da história do Ari. Ele, todo contente, ofereceu seus dedos diabéticos para serem chupados por Vera. Estavam cheios de feridas e repletos de pequenos mosquitos sugando o pus das erupções.

A viúva chupo-os todos com voracidade.

“Sabem aquele cara que foi achado morto numa chácara um dia desses?”, perguntou o jovem aspirante a escritor. “Um que levou um tiro no meio na cara e que depois foi esquartejado. Aquele que a polícia prendeu os assassinos ainda sujos de sangue na Pousada Embiral”.

“Um que a polícia ainda não achou o corpo?”, perguntou Ari.

“Sim, esse mesmo.”

“Quê que tem?”, perguntou a Viúva, ainda lambedo os dedos diabéticos do Limpa Fossa.

“Então. Eu vi a desova dele. Vi quando uns caras chegaram com os pedaços do corpo num fusca. Tem uns três dias isso. Foi quando eu procurava carniças de bois na beira da Estrada do Arroz. O carro dos caras passou por mim e depois parou a cerca de uns trezentos metros de onde eu estava. Acho que eles não me viram, pois saíram com os pedaços do corpo e uma enxada para enterra-los. Demoraram um tempão pra dentro do mato, cavando e rindo, e depois foram embora como se nada tivesse acontecido. Eu vi tudo detrás duma moita. Eu sei onde ele foi enterrado!”

“Jura, menino?”

“Juro por esses teus olhos que eu hei de comer!”

“Mas o presunto ainda tá lá ou tua já caiu de boca nele?”

“Ainda está lá. Embora não acreditem, não sou tão egoísta assim. Decidi dividi-lo com vocês. É o nosso próximo piquenique! Só faço uma exigência: a cabeça. A cabeça é minha.” 

“Hum, ela deve está bem decomposta!”

“Nem me fale. Adoro cabeças assim. Cabeças bem podres. Cabeças cheias de vermes.”

“Tal qual esta do porco, suponho, afirmou Vera, a viúva.”

“Sim, se bem que prefiro as humanas. Órbitas oculares cheias de vermes me lembram uns versos de um poeta que admiro."

Ele então levantou-se, e com os lábios ainda escorrendo o pus dos furúnculos deglutidos, declamou enquanto era envolto pelo negrume avassalador do crepúsculo:

“Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!”

“Bravo, Amadeo!”, disseram todos, aplaudindo a declamação eloquente do aspirante a escritor e recolhendo as toalhas e as cestas.

2 comentários:

Anônimo disse...

Tu é o cara da escrita, mas essa ficou pesada, ahhh ficou! HEHEHEH

Anônimo disse...

Hummm... Só delícia!