sábado, 10 de abril de 2010

O VAZIO

Não lembrarei a data certa - se véspera ou noite de Natal -, nem o teor exato da conversação. Eu estava escovando os dentes quando o telefone tocou em cima da fruteira abandonada no quarto também abandonado - o primeiro compartimento da casa, na verdade um espaço amplo que fora originalmente projetado para ser usado como comércio, Mini Box, essas coisas. Ainda com a escova de dentes na mão e sentindo o gosto menta do Kolynos na boca, eu puxei o fone e sentei ao lado da fruteira, no piso vermelho um pouco empoeirado.

“Alô”.

Do outro lado da linha ninguém respondeu, a não ser o barulho de um cachorro latindo e de uma televisão ligada no Globo Repórter, exatamente o programa que meu irmão assistia na sala, não tão perto para poder ouvir-me ao telefone, nem tão longe que eu não pudesse escutar o Sérgio Chapelin anunciando o conteúdo do programa daquela sexta, algo do tipo Os Mistérios da Vida Submarina no Arquipélago de Fernando de Noronha.

“Alô”, eu disse novamente, enquanto o Chapelin chamava os comerciais, e já ia bater o fone, mas eis que, antes de tocar a musiquinha tema do Globo Repórter, uma língua meio embolada respondeu:

“Oi, alô, tudo bem?”

Uma voz feminina, madura, um pouco descoordenada. E antes que eu respondesse:

“Com quem eu falo?”

“Eu é que pergunto com quem eu falo”, respondi.

A voz disse que chamava-se Magnólia e estava tentando ligar para a casa de uma amiga. Teresa era o nome da tal amiga. Depois completou:

“Acho que tá dando linha cruzada. Mas... como é seu nome mesmo?”

“Ricardo”.

Não, eu não ia dizer meu nome verdadeiro. Podia muito bem ser um trote. Uma amiga de colégio se passando por uma mulher bêbada para me pregar uma peça.

“Então, Ricardo. Não é aí que mora a minha amiga Teresa não, não é? Ou será que é?”

“Não, não é não”.

Me pediu desculpas. Não queria incomodar. Mas é que a Teresa tinha dado aquele número para ela.

“Deve ter dado errado então.”

“Pois é”.

“Então tudo bem, dona Magnólia, vou desliga o telefone.”

“Não, espera aí.”

Ouvi um barulho parecido com um dedo bolinando em cubos de gelo dentro de um copo de wisk.

“Cê tá bebendo?”, perguntei?

“Tô, bebê” - ela disse, enquanto eu imaginava ter ouvido um estalo de língua entre lábios -, “tô bebendo Passport com gelo de água de coco. Quer um pouquinho?”

“Não, minha senhora... Vou desligar.”

“Espera, rapaz, vamos conversar um pouco. Tô sozinha e triste aqui do outro lado da linha. Meus filhos estão viajando pra Salinas e eu fiquei em casa só com o cachorro e o papagaio...”

Depois de uma pausa, ou de um gole de Passport, ela disse que o marido também não estava em casa. Tinha ido pescar tambaqui no açude da Chácara Menina Mar Linda com um grupo de amigos. Segundo a mulher, havia cinco natais que era sempre assim: os filhos viajando, o marido pescando e ela sozinha em casa, bebendo e fumando sob o ar condicionado do quarto do casal. Por isso ligou pro primeiro número que lhe veio à mente. Queria falar com alguém, passar o tempo, espairecer. E principalmente preencher um tal de vazio.

“Que vazio é esse?”, perguntei.

“O vazio existencial, menino da voz bonita. O vazio que maltrata a gente, que impede a gente de viver bem. Mas você não deve saber o que é isso. Você parece jovem. Aliás, quantos anos você tem?”

Eu não menti: quatorze. Ela tossiu do outro lado e disse que era uma idade linda. Uma idade que não tinha vazio nenhum pra preencher.

“Você está na flor da idade, mocinho. Aposto que é um rapaz bonito. Você tá sozinho em casa?”

“Não, tô com meu irmão, mas minha mãe e meu pai tão viajando.”

Escutei um som abafado de campainha. Ela pediu um tempo, uns dois minutos. Depois voltou mastigando. Era uma pizza que havia encomendado. Perguntou se eu aceitava e eu disse que não. Então pôs-se a falar novamente sobre o tal vazio existencial. Os ciúmes do marido, os filhos problemáticos, a mesmice da vida de dona-de-casa, o desejo de largar tudo - família, emprego -, estalar os dedos e desaparecer. Por fim, perguntou se eu não estava disposto a preencher o tal vazio.

“Talvez”, eu disse, e perguntei de que modo poderia fazê-lo.

“É muito fácil. Você vem aqui em casa pra beber comigo. A gente conversa. Você me abraça bem forte, porém devagar. Isso fará com que eu fique bem molenga e me abra totalmente pra você preencher o meu vazio”.

“Mas o que eu boto dentro desse vazio?”

“Tua força, tua energia, tua raiva, bota tudo que você tiver, coração.”

“Tá bom então.”

“Você vem?”

 “Onde cê mora?”

“Na 15 de Novembro, perto da Assembléia de Deus”.

“Tô indo, viu. Me espera aí”.

Bati o telefone. Minha cabeça estava um pouco tonta. Fui até a sala e sentei no sofá olhando pra televisão. Meu irmão não estava mais: tinha saído pra escovar os dentes. Fiquei olhando as letrinhas subindo no encerramento do Globo Repórter. Tive a impressão de que elas saiam da tela e continuavam subindo até o telhado. Do telhado batiam na estante. Da estante batiam no sofá e depois em outros móveis. Algumas resvalavam na minha cabeça e seguiam procurando outras tabelas. Em pouco tempo a sala estava repleta de créditos finais do Globo Repórter. Foi quando o telefone tocou e o meu irmão, voltando da pia com a escova de dentes pendurada na boca, atendeu.

“Alô”, ele disse, ao tempo em que na TV a Lílian Witti Fibe chamava as notícias do Jornal da Globo. “Alô”, disse novamente, e eu, já meio zumbi, sentia agoniado uma sensação de vazio crescendo dentro de mim.

11 comentários:

Carlos Hermes disse...

Luís, tu é muito bom miserável...rs
Cara, os detalhes descritos do ambiente, dos objetos,as sensações,pude vizualizar tudo. Detalhes com pitada de grande imaginação dignos de um grande conto.

Ainda vou ler essa obra completa e editada pela Ética Editora...que não demore...rss

abraço camarada.
Parabéns!

observateur disse...

Putz grilas irmão! Tudo quanto é coisa acontece aqui na velha rua de 3 nomes, até mulher querendo coisá.

um grande abraço, gostei do conto.

Iuri Petrus disse...

Apesar de lhe chamarem de Tia de calçada em outros co(mome)ntos adoro seus passeios entre o passado, o real e a alucinação...combina com sua figura misteriosa.

Anônimo disse...

Crônica de primeira!!!

Postei comentário no Blog de Carlos Hermes...

prof.Magno Urbano

em tempo:diálogos muito bem trabalhados.Fui até Calcutá e voltei...!

Fontes disse...

Um dos meus sonhos de consumo na infância era escovar os dentes com Kolynos Star Gel, que tinha brilhantes na pasta. Outro sonho era ter uma Scania.

Natal Marques disse...

Não sei por que esse povo se admira. Eu já sabia desse talento surreal, dessa viagem muito louca. Mas tá sumido né cara?!

Um abraço e saudações à bucólica Amarante!

Vanusa Babaçu disse...

E essa cidade princesa habitada por 'VELHAS RAINHAS" Que se embriagam em suas noites de maridos pescadores... umas ligam outras esperam a sorte do telefone tocar.

Maravilhoso,

Eu já estava com saudades.

beijoss

Iuri Petrus disse...

Só queria dizer que a admiração, o espanto ou o que mais for, não se conhecem nem permanecem...se sentem como uma dor fina e aguda de uma felpa no dedo do minino!

L. S. D. disse...

Carlos Hermes, tô me atualizando direto com as suas "quentinhas". Observateur, você, que mora na Rua de Três Nomes, deve saber muito mais coisas do que eu. Iuri, sabemos que o nosso dia a dia, às vezes, é muito mais alucinógeno do que nossas vãs alucinações. Prof. Magno, por falar em "diálogos", precisamos voltar a dialogar nas velhas mesas de bar. Fontes, aposto que você comia barro na infância. Natal, o Amargante continua lindo. E Babaçu: mesmo em terras imperiais, reis, rainhas, princesas, príncipes e sapos têm seus dias de fossa.

Anônimo disse...

lindo!

Rosana Barros disse...

Vi muito talento nesse texto. A riqueza de detalhes e impressionante. É como se estivessemos espiando o que o cara está fazendo. Vou continuar visitand. Abraços