quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O MENDIGO DA VIOLA DE PLÁSTICO


Às vezes eu o via no Calçadão, próximo ao Armazém Paraíba, tocando um quebradiço violão, enquanto o seu parceiro de vadiagem e mendicância (este, aleijado, paralisia infantil) arrastava seus membros inferiores pequeninos e sujos para poder recolher as moedas jogadas no chão. Outras vezes, geralmente à noite, enquanto aguardava o buzu do Conjunto Vitória passar, eu o via na parada de ônibus da praça Tiradentes, nos arredores das barraquinhas de comida, viola em punho, tocando - incomodando - os poucos clientes das barraqueiras, na esperança quase inútil de obter alguma migalha para forrar o bucho.

O tempo passou, o tempo voou, a poupança Bamerindus foi pros cocos, até que, dia desses, vi a foto acima no blog do fotógrafo Pinheiro. Não havia muita informação. O óbvio apenas: acidente de trânsito. Fiquei olhando os detalhes da imagem. Pequenos detalhes, suposições.

O carro verde, um Uno parado no trânsito - ou em trânsito no trânsito?; dois homens operando celulares: um de camisa laranja manga comprida, quase no centro da foto, e o outro, um motoqueiro, capacete firmado na testa, no canto esquerdo - estariam eles ligando para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o popular Samu?; Três crianças olhando a cena - não diretamente para o homem caído, nem para o homem em pé, cabeça baixa, segurando o cotovelo esquerdo com a mão direita, mas para outro ponto, um ponto não identificável na foto, um ponto aparentemente tão longe - por não ter sido capturado pelo clic - e ao mesmo tempo tão perto - por estar ali, nas imediações, talvez só a alguns centímetros além do enquadramento do fotógrafo; uma quarta criança - um menino, um bicicleteiro - olhando frontalmente para a lente da máquina; cinco adultos (ou quatro deles mais a metade de um), que podem muito bem se conhecer (ou se desconhecer), no canto direito, à esquerda do homem de camisa laranja, sendo que um deles, o barrigudo, fuma um cigarro que pode ser Carlton, ou Derby, ou Free, ou Plaza, ou mesmo um cigarro de maconha feito em palha de milho e embebido em mel; um casal numa moto, em terceiro plano, atrás do Uno verde, olhando para o lado oposto da cena, possivelmente perguntando para a mulher morena, também atrás do Uno: “-Foi acidente?”; outros dois bicicleteiros, ambos de boné, um no meio e outro no canto esquerdo, em aparente comunicação visual; silhuetas de outras pessoas no lado direito, detrás dos quatro homens mais a metade de um; a clara curiosidade da mulher do Uno verde, esticando o pescoço e procurando melhor ângulo de visão, algo quase mórbido, extremamente reprovável em mulheres como ela, supostamente uma serva de Deus, uma assembleiana, uma mulher fiel e obediente ao marido; a rabeta de uma motocicleta, azul, no lado inferior esquerdo, possivelmente a motocicleta que se envolveu - é o que informa o blog do repórter fotográfico - no acidente automobilístico; um violão quebrado em três partes, supostamente do homem caído e próximo ao corpo dele, que pode ter parado ali pela força do impacto da colisão, ou pode também ter sido posto ali por um contra-regras que estava vindo do teatro com o instrumento cenográfico e decidiu colocá-lo naquela posição para dar mais veracidade aos fatos, para chamar a atenção das autoridades responsáveis pela segurança no trânsito; o homem em pé, magro porém forte (típico aspecto de estivador), mão direita segurando o cotovelo esquerdo, calça rasgada, um pouco curvado, talvez sentindo dor, talvez se preparando para desferir um chute certeiro na cara do imprudente transeunte que atravessou o seu caminho, mas certamente o piloto da motocicleta azul envolvida no acidente; enfim o próprio homem caído, braços para trás, pernas em “V” (o formato preciso de um passo), cabelos grisalhos, roupa gasta, suja - o acidentado, o mendigo, o que eu não via há muito tempo, o atropelado, o que não é recenseado pelo IBGE, o mesmo de oito ou noves anos atrás, nos arredores do Armazém Paraíba, e o mesmo de ontem, 22 de dezembro de 2009, dez da noite, flagrado por mim e pelos farois de diversos veículos nos arredores da rodoviária, numa rua pouco iluminada, calças arriadas, sentado estrategicamente numa calçada (na verdade, utilizando a sua altura como providencial sanitário) e cagando, principalmente cagando, com aquela cara de alívio que um bom cagão sempre nos dá, ele e sua viola - agora, depois do acidente - de plástico.

4 comentários:

Anônimo disse...

poxa, era o famoso "Michel Jackson"...

L. S. D. disse...

Um tocador de primeira, e super afinado... rs

Natal Marques disse...

Luís, cara seu olhar não é desse mundo. Não precisa ver a foto, com essa descrição já se vive a cena. Bom saber que esse sacana está vivo; é uma figura folclórica.

Abraço!

L. S. D. disse...

Pois é, felismente o cabra tá vivíssimo e transitando agora só por cima das calçadas da Rodó. Abração.