I
“Coisa perdida é qualquer coisa que sabemos de sua existência mas não sabemos onde se encontra. É algo desaparecido. Por desaparecido consideramos aquilo que deixou de ser visto, que ocultou-se ou foi ocultado. É, em outras palavras – antípodas palavras - , o que antes ‘era’ ou ‘estava’, mas agora não ‘é’ nem ‘está’, embora, em algum lugar não sabido, continue ‘sendo’ ou ‘estando’, que é o mesmo que existir. Mas, o que é ‘existir’?”1
II
“[Aplausos] Boa noite. Gostaria de iniciar minha fala agradecendo o convite que me foi feito pela ilustríssima Universidade Imperatrizense de Ciências Agravantes para debater um tema tão caro em nossos dias, que é a questão da Insegurança Crônica Causada por Balaços Perdidos. Isso porque, como todos sabem, a nossa sociedade sofre o ataque desse câncer altamente destrutivo. Se fossemos um corpo, seríamos o de um doente em estado terminal. [Pausa para beber água] Mas, como ia dizendo, é impossível não reconhecer que as sementes do ódio proliferam nas diversas partes da cidade. Todos os dias dezenas de vidas são ceifadas por balas perdidas. Estamos vivendo, por assim dizer, um abominável período de barbárie urbana. [Nova pausa, agora para enxugar a testa] Entretanto, exageramos ao tentar dimensionar os contornos desse fenômeno. Na verdade, superestimamo-lo, vítimas que somos de um medo cada vez mais latente. Mas, garanto-lhes, não há motivo para tanto frenesi. Forçoso é examinar os fatos com a luz da razão. Afinal, como podemos temer tanto as balas perdidas se elas, na verdade, não existem? Se são inexoralvemente fabricadas por nós, e não por si próprias? [Alguém ri, baixinho, no fundo do auditório] Falo sério, senhores, não falo anedotas. Não há motivo para pilhérias. Sim [Ergue a mão, o dedo indicador em riste], balas perdidas não existem. Ora, se são perdidas, são inexistentes, e se não existem, como podem fazer mal a alguém? O que existem, de fato, são balas encontradas – pois o que é efetivamente perdido não se acha. E encontradas por quem? Por seres à toa, como essa jovem que, em vez de estar descansando no refúgio do seu lar, transitava arbitrariamente na selva da madrugada, pelos becos e ruelas de um bairro perigoso como o da Caema. E o que queria ela, às três da madrugada, caminhando em ambiente tão hostil? Queria encontrar Papai Noel? Queria encontrar Jesus Cristo? Não, senhores, o que essa garota queria encontrar, como encontrou, era um balaço na testa. A culpa de sua morte, portanto, é totalmente dela. [Ao mesmo tempo que alguém grita ‘bravo, bravíssimo!’, alguém diz ‘idiota, maluco, imbecil!’] Sim! Dela, que encontrou a bala, e não da bala, que foi brutal e inopinadamente encontrada e acabou perdendo a sua identidade, pois passou, em questão de centésimos, da condição de bala perdida para bala encontrada. É ela, senhores, a bala perdida, senhores, a grande vítima dessa história [Ouvem-se vaias, aplausos, e, antes do palestrante agradecer a presença de todos, as luzes se apagam e um disparo de arma de fogo ecoa no auditório].”2
III
“Morreu no último dia 10, vítima de disparo de arma de fogo, a jovem J.F.C., 16, residente à rua Rio Grande do Norte, s/n, Centro. O triste episódio ocorreu por volta das 3h da madrugada, nas imediações do Bairro da Caema, periferia de Imperatriz. Segundo o perito criminal Málio Amolin, presente no local, o projétil varou-lhe horizontalmente o crânio, causando morte instantânea. Ainda não se sabe o motivo do sinistro. Devido ao constante tiroteio entre os traficantes daquele bairro, a polícia trabalha com a hipótese de uma bala perdida como causa mortis, pois a motoneta que a adolescente pilotava amanheceu junto a seu corpo, intacta. Populares afirmam que a garota costumava perambular sozinha pelas ruelas do Bairro da Caema. Nessa época do ano, conforme apontamentos da Ong Maconha Nunca Mais, é comum jovens de classe média procurarem drogas na periferia da cidade. Segundo fontes extra-oficiais, foi encontrado um poema de temática lúgubre no bolso da calça que J.F.C. usava. Até o fechamento desta edição, entretanto, a polícia não havia confirmado ou divulgado o conteúdo do suposto poema. O sepultamento da jovem será hoje, no Cemitério Campo da Saudade, às 17 h.”3
IV
“SABOROSO DROPE PRATEADO
a bala é disparada
e em disparada
rasga o tempo o espaço
o extenso-curto percurso
que a separa de meu corpo.
una, solitária, perdida.
mortífera bala sabor hortelã
a derreter-se sobre minha língua”4
NOTAS AOS ESTILHAÇOS
1.FRANCIS, Adiabético (Org.). Divagações Acerca do Nada. Imperatriz: Antiética Editora, 2018.
2.Discurso proferido pelo vereador e escritor Geremilson Santes, no dia 14/08/2018, no auditório central da IUICA, no encerramento do seminário sobre Insegurança Crônica Ocasionada por Balaços Perdidos.
3.JORNAL O REGRESSO. Mais uma Vítima de Bala Berdida na Madrugada. 12/07/2018.
4.Poema encontrado no bolso da calça da jovem J.F.C., vítima de bala perdida, no dia 10/07/2018, conforme amplamente noticiado pela imprensa imperatrizense.
“Coisa perdida é qualquer coisa que sabemos de sua existência mas não sabemos onde se encontra. É algo desaparecido. Por desaparecido consideramos aquilo que deixou de ser visto, que ocultou-se ou foi ocultado. É, em outras palavras – antípodas palavras - , o que antes ‘era’ ou ‘estava’, mas agora não ‘é’ nem ‘está’, embora, em algum lugar não sabido, continue ‘sendo’ ou ‘estando’, que é o mesmo que existir. Mas, o que é ‘existir’?”1
II
“[Aplausos] Boa noite. Gostaria de iniciar minha fala agradecendo o convite que me foi feito pela ilustríssima Universidade Imperatrizense de Ciências Agravantes para debater um tema tão caro em nossos dias, que é a questão da Insegurança Crônica Causada por Balaços Perdidos. Isso porque, como todos sabem, a nossa sociedade sofre o ataque desse câncer altamente destrutivo. Se fossemos um corpo, seríamos o de um doente em estado terminal. [Pausa para beber água] Mas, como ia dizendo, é impossível não reconhecer que as sementes do ódio proliferam nas diversas partes da cidade. Todos os dias dezenas de vidas são ceifadas por balas perdidas. Estamos vivendo, por assim dizer, um abominável período de barbárie urbana. [Nova pausa, agora para enxugar a testa] Entretanto, exageramos ao tentar dimensionar os contornos desse fenômeno. Na verdade, superestimamo-lo, vítimas que somos de um medo cada vez mais latente. Mas, garanto-lhes, não há motivo para tanto frenesi. Forçoso é examinar os fatos com a luz da razão. Afinal, como podemos temer tanto as balas perdidas se elas, na verdade, não existem? Se são inexoralvemente fabricadas por nós, e não por si próprias? [Alguém ri, baixinho, no fundo do auditório] Falo sério, senhores, não falo anedotas. Não há motivo para pilhérias. Sim [Ergue a mão, o dedo indicador em riste], balas perdidas não existem. Ora, se são perdidas, são inexistentes, e se não existem, como podem fazer mal a alguém? O que existem, de fato, são balas encontradas – pois o que é efetivamente perdido não se acha. E encontradas por quem? Por seres à toa, como essa jovem que, em vez de estar descansando no refúgio do seu lar, transitava arbitrariamente na selva da madrugada, pelos becos e ruelas de um bairro perigoso como o da Caema. E o que queria ela, às três da madrugada, caminhando em ambiente tão hostil? Queria encontrar Papai Noel? Queria encontrar Jesus Cristo? Não, senhores, o que essa garota queria encontrar, como encontrou, era um balaço na testa. A culpa de sua morte, portanto, é totalmente dela. [Ao mesmo tempo que alguém grita ‘bravo, bravíssimo!’, alguém diz ‘idiota, maluco, imbecil!’] Sim! Dela, que encontrou a bala, e não da bala, que foi brutal e inopinadamente encontrada e acabou perdendo a sua identidade, pois passou, em questão de centésimos, da condição de bala perdida para bala encontrada. É ela, senhores, a bala perdida, senhores, a grande vítima dessa história [Ouvem-se vaias, aplausos, e, antes do palestrante agradecer a presença de todos, as luzes se apagam e um disparo de arma de fogo ecoa no auditório].”2
III
“Morreu no último dia 10, vítima de disparo de arma de fogo, a jovem J.F.C., 16, residente à rua Rio Grande do Norte, s/n, Centro. O triste episódio ocorreu por volta das 3h da madrugada, nas imediações do Bairro da Caema, periferia de Imperatriz. Segundo o perito criminal Málio Amolin, presente no local, o projétil varou-lhe horizontalmente o crânio, causando morte instantânea. Ainda não se sabe o motivo do sinistro. Devido ao constante tiroteio entre os traficantes daquele bairro, a polícia trabalha com a hipótese de uma bala perdida como causa mortis, pois a motoneta que a adolescente pilotava amanheceu junto a seu corpo, intacta. Populares afirmam que a garota costumava perambular sozinha pelas ruelas do Bairro da Caema. Nessa época do ano, conforme apontamentos da Ong Maconha Nunca Mais, é comum jovens de classe média procurarem drogas na periferia da cidade. Segundo fontes extra-oficiais, foi encontrado um poema de temática lúgubre no bolso da calça que J.F.C. usava. Até o fechamento desta edição, entretanto, a polícia não havia confirmado ou divulgado o conteúdo do suposto poema. O sepultamento da jovem será hoje, no Cemitério Campo da Saudade, às 17 h.”3
IV
“SABOROSO DROPE PRATEADO
a bala é disparada
e em disparada
rasga o tempo o espaço
o extenso-curto percurso
que a separa de meu corpo.
una, solitária, perdida.
mortífera bala sabor hortelã
a derreter-se sobre minha língua”4
NOTAS AOS ESTILHAÇOS
1.FRANCIS, Adiabético (Org.). Divagações Acerca do Nada. Imperatriz: Antiética Editora, 2018.
2.Discurso proferido pelo vereador e escritor Geremilson Santes, no dia 14/08/2018, no auditório central da IUICA, no encerramento do seminário sobre Insegurança Crônica Ocasionada por Balaços Perdidos.
3.JORNAL O REGRESSO. Mais uma Vítima de Bala Berdida na Madrugada. 12/07/2018.
4.Poema encontrado no bolso da calça da jovem J.F.C., vítima de bala perdida, no dia 10/07/2018, conforme amplamente noticiado pela imprensa imperatrizense.
7 comentários:
Muito bom mesmo, meus sinceros parabéns!
olha olha que o vereador é capaz de te processar por danos morais
Impossível. Esta é uma obra de "fricção" e qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais terá sido mera coincidência rabiscada pelo meu "ósseo improdutuvo"...
ahahah...olha na nota do jornal "o regresso" faltou aquele velho jargão "logrando êxito" das páginas policiais...hahaha
Copiado! QAP!
Parabéns, Luís! Essa é a Imperatriz do pós-apocalipse. Isto é, se até lá não religarem a máquina aceleradora de partículas...
Pô, Fontinho, adorei os comentários. Sobretudo o outro, que eu infelismente recusei sem querer ao tentar publicá-lo, hehe. Espero te ver sábado no show do Jerry Adriani, aqui nesta "Imperatriz por um triz", pra gente cantar juntos, bêbados, "una paloma blanca..."
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