Querida mamãe,
Minha namorada inflável morreu na última quarta-feira. Não suportou a insolação das três da tarde e estourou à beira da piscina. Eu estava na cozinha preparando uma soda limonada quando escutei o barulho da explosão - um barulho seco, de mórbida plasticidade. Corri para o quintal pressentindo o pior e quando lá cheguei vi o que antes era beleza e esplendor secando e se transformando numa pele dura e cheia de fissuras, a mão antes robusta da minha querida Tiffany reduzindo-se a um resto de plástico que já não segurava com firmeza a taça de Martini que repousava na cadeira de sol. Os dedos, principalmente o Maior de Todos e o Fura Bolo, mais pareciam os de uma caveira. À medida que esvaziava, o rosto de Tifanny materializava mais e mais o pavor daquela tela do Edvard Munch. Pernas e braços secos em questão de segundos. Ventre esquálido. Um filme de terror, mamãe.
Não nego que negligenciei as recomendações do fabricante. As instruções eram bem claras: não expor ao sol após as dez da manhã e antes das quatro da tarde; não derrubar brasa de cigarro sobre o corpo; aparar as unhas; não manusear objetos metálicos (faca, tesoura, utensílios de cozinha) sem o devido cuidado; limpar com água e sabão após as afinidades eletivas e afetivas; não esquecer as juras de amor; perguntar "como foi seu dia?" ao chegar do trabalho; beijo na testa antes de dormir; e principalmente usar o Superprotetor Solar Antiexplosão de Namoradas Infláveis. Ações simples que poderiam poupar a vida da minha princesa. "Pequenos gestos, grandes ações", como diria o presidente da Associação Nacional dos Namorados de Namoradas Infláveis. Mas agora é tarde, mamãe. O caldo já derramou.
No dia seguinte a polícia bateu à minha porta. Um delegado e dois investigadores me fizeram diversas perguntas constrangedoras - "Onde o senhor estava, exatamente, quando ela morreu?". Conversaram reservadamente com alguns vizinhos, fizeram anotações, colheram minhas digitais, chamaram um perito (um perito, mamãe!) e chegaram até a olhar-me de esguelha enquanto cochichavam entre si. De certo me têm como suspeito de homicídio. Nada anormal, se levarmos em consideração a quantidade de namoradas infláveis que foram assassinadas por seus parceiros neste final de ano. "O senhor possui alguma arma de fogo na sua residência?", perguntou-me o investigador de olhos cor de pêssego. Nessa hora quase Tiffany ressuscitava para brandir aos policiais que "Não, nós não temos arma nenhuma em nossa casa!". "Nenhum um 38?", insistiu o outro investigador, um negro de repugnante cavanhaque australiano. "Não, senhor", tornei a negar. "Chega. Vamos", disse o delegado. E se foram, enquanto os removedores do IML recolhiam o corpo de Tiffany e eu assuava o nariz de tanto chorar.
Felizmente o laudo do Instituto Médico Legal dissipou qualquer suspeita que recaía sobre mim. "A morte foi classificada como naturalíssima", disse-me por telefone advogado Bolinha, após uma breve audiência com os médicos legistas. O Bolinha é realmente um grande operador do direito. Foi ele quem me alertou, logo após o fatídico, sobre a necessidade de puxar o corpo de Tiffany para a sombra e lambuzá-la toda com o Superprotetor Solar Antiexplosão. Assim, assegurou, a polícia não poderia me acusar de homicídio culposo na modalidade morte solar. Mas não adianta, mamãe. Mesmo livre eu já estou condenado. O caldo já derramou. Não há sentença pior do que viver sem Tiffany: choro todos os dias à beira da piscina, procuro-a em vão pelos cômodos da casa. Jamais assimilarei (não ouso sequer pronunciar a palavra aceitar) a perda de Tiffany. Não sei se viverei muito tempo sem os seus carinhos. Receio morrer de banzo.
"É amor demais, é coisa de Deus" - diz a canção que ouço sem parar no MP3 depois que o meu docinho morreu. Difícil não lembrar da sua face angelical, seus modos de menina moça que enchiam a casa de suave beleza. Era a mulher da minha vida, digo, a namoradinha inflável da minha existência. Nunca reclamou de nada, nem quando eu cheguei bêbado tarde da noite com a camisa cheia de manchas de batom de uma prostituta inflável. Nunca me levantou a palavra, nunca me cobrou juras de amor, jamais negou fogo na cama. Pensávamos em casar, ter três filhinhos infláveis para levar ao parque nos domingos. Quem sabe se, com o tempo, a ciência não desenvolve um método para ressuscitar namoradas infláveis? Em Berkeley as pesquisas estão avançadas. Na geladeira ainda guardo os dois copos de soda limonada que eu havia preparado no momento da sua morte, na esperança inútil - porém romântica - de que um dia ela apareça para beber comigo
P.S.: Sabe, mamãe, eu cheguei a suspeitar do meu vizinho quando a vi morta. Ele poderia muito bem ter jogado por cima do muro uma bituca de cigarro na minha amada. Inveja, mamãe. Por que não? Daí o estouro repentino. Pensei seriamente nessa possibilidade. Achei-a verossímil, factível. Mas ontem, depois que sua namorada inflável também faleceu em circunstâncias parecidas, rechacei tal possibilidade. Aliás senti pena ao vê-lo na calçada, desolado, tentando explicar para o investigador de repugnante cavanhaque australiano a perda da sua Shirley. Ele está sofrendo também, mamãe. Sofrendo muito. Seus olhos andam constantemente vermelhos. Emagreceu. Com certeza deve ter perdido o apetite também. Dá dó. Sabe, mamãe, acho que vou tentar uma aproximação. Conversar com ele, dividir a dor, pois só assim poderemos superar a tragédia comum. Se nada aplacar nosso sofrimento, o convidarei para formar uma dupla de Sertanejo Universitário. Apolíneo e Apolônio, que tal o nome? Ainda não escrevi nenhuma música, mas já tenho em mente o título do disco: Amores Infláveis - A vida sem você é um vazio.
Beijos do seu querido filho.
9 comentários:
É, meu querido filho, Volte pra mão, novamente. Hahaha...
Bela tragédia, Luídi. Me lembrou um filme cujo heroi fica obsecado pela sua imflável boneca. "Olho do mal", é o nome, senão me engano.
Hum... Não tinha ouvido falar desse filme. Vou procurá-lo...
Muito bom! Original!
prof.Magno Urbano
Luídi, por onde andava, sempre venho a este hotel para me hospedar, mas, ultimamente, estava fechado.
Fala, Bodão. Tava fechado mas já tô reabrindo as portas pra corja... rsrsr
É a segunda vez que passo por esse(M)Hotel Subterrâneo, que é pra lá de Undergroud, além de sempre inusitado. Fugir dos padrões estabelecidos refrigera a alma e nos faz sentir que somos apenas humanos, demasiadamente humanos.
Esse conto, apesar de não realista, realmente faz jus a mais fantástica das fantásticas das literaturas de Gabriel Garcia Marques.
Opa. Bem vindo, Walquer.
teu texto tem nexo e fluxo, sangue e flor, é explosivo e implosivo, reflexivo sem ser sentimental... teu texto é um açude que a gente mergulha e às vezes se afoga, um trem atropelando uma casa de família, um beija-flor viciado em jardim, teu texto és tu, ó meu policial da swat azul, que apesar de não ser doente de amor, procuras remédio na vida noturna...
Lindo texto!!!
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