quinta-feira, 9 de setembro de 2010

AS PONTES DA GAUTAMA DEPOIS DA CURVA DA MORTE

Alguns amigos sabem que morreu um policial que trabalhava comigo lá no Amarante. Num acidente de trânsito. Numa curva, na saída de uma cidade, contra uma mangueira. Se ele corria demais - e há quem diga que esse foi o motivo do acidente -, é porque, de fato, a velocidade era sua característica. Lembro que às vezes, quando vínhamos a trabalho para Imperatriz (e almoçávamos na minha casa), ele era o primeiro a concluir a refeição, o primeiro a palitar os dentes, o primeiro a agradecer o almoço e o primeiro a querer retornar para o Amarante. Dada essa correria, houve quem afirmasse: "se ele estivesse mais devagar, teria escapado". Mas, e se ele estivesse mais rápido, também não teria escapado? Causalidade por causalidade, passaria no local do acidente antes do acidente, noutro tempo e possivelmente com outro ânimo. Ou nem passaria por lá: a pressa poderia ter feito ele esbarrar num amor antigo na esquina, obrigando-o a permanecer na cidade (embora isso não tenha se concretizado porque, ao passar menos veloz na esquina, ele, o amor, já tinha ido embora). Há uma frase erroneamente atribuída a Borges que diz: "A vida é muito curta para ser pequena". Não o culpo. E considerando outra frase creditada ao escritor argentino (na verdade, versos muito pueris para serem borgeanos - "se pudesse voltar a viver,/ trataria de ter somente bons momentos"), creio que é melhor morrer desafiando a vida do que envelhecer, covarde, temendo a morte.

Quando retornávamos da visita ao túmulo do companheiro morto, decidimos passar por São Benedito do Rio Preto, a cidade onde ocorreu o acidente, mesmo sabendo que isso implicaria em muitos quilômetros a re-percorrer. Um tio do nosso amigo, dirigindo uma caminhonete prata na frente, foi o nosso guia. Vimos o local do acidente e depois o carro, que de tão amassado na parte traseira - era um Corolla preto -, mais parecia um Ford K. Conversando depois com o senhor da caminhonete, descobri ser ele pai de uma amiga minha (Niciane, contemporânea de Uema) e que a caminhonete que ele dirigia era a mesma que a Nice havia avisado, via Orkut, há cerca de um mês, que tinha sido roubada. Já estava escurecendo quando partimos. Aconselhados pelo pai da Nice, pegamos um atalho na viagem (que segundo ele nos economizaria uns 200 quilômetros) e encaramos a estrada vicinal que liga (ou antes desliga) Vargem Grande a Coroatá. Na partida fomos avisados dos desvios existentes ao lado de cada ponte de madeira. Logo no primeiro desvio, ao lado de uma ponte feita de estacas já podres, vimos uma outra ponte, ou antes os esqueletos dela, enorme, de concreto armado, esticada ao longo das cabeceiras de uma estrada que não existe. E assim, pontuando os buracos do caminho, elas foram aparecendo, imponentes e inúteis. Eram - não havia dúvida - as pontes da construtora Gautama.

P.S.: No meio do percurso, já pelas nove da noite, uma raposa atravessou o nosso caminho e prostou-se a passos lerdos na nossa frente. Talvez assustada, não ligou para as buzinas, as alternâncias de farol alto e baixo, as acelerações e desacelerações do carro, enfim os tiros para cima como sinal de que queríamos ultrapassá-la. A raposa pequena desafiando a vida e correndo o risco de ser atropelada. Talvez o que se sinta no momento da morte seja algo parecido com a vertigem que antecipa um salto. Um frio na barriga da vida. Uma vontade de urinar mesmo sabendo que não é mais possível. E ela, a vida, como nos finais dos filmes do Felline - o Anthony Quinn em La Strada; a Giulietta Masina em Noites de Cabíria - seja menos amarga se pensada com os créditos subindo a tela com o final em aberto.

Um comentário:

Anônimo disse...

bonito e triste, como quase tudo por aqui!...