sábado, 5 de junho de 2010

O ROTEIRO DAS SETE PONTES

Não vi a exposição da Vanusa Babaçu, não bebi a Cerpa do Bar do Beco. Às cinco da manhã da terça, tentando ser amistoso diante de um frentista sonolento, abasteci a moto e rumei para Amarante. Às oito, conforme me dissera por telefone o delegado, já deveria estar a postos, porque meia hora depois partiríamos para a localidade denominada Sete Pontes, na zona rural da cidade. “Sete Pontes? Fazer o que?”, perguntei. “Uma missão. Apenas uma missão”, ele respondeu, deixando transparecer certo júbilo com o meu espanto.

No horário combinado embarcamos. Na frente (o veículo era uma L200 4x4) entraram o motorista, o delegado, um sargento e um cabo PMs – quase a metade do efetivo policial da cidade –, além do ar frio do ar-condicionado. Atrás, na carroceria, disputando pedaços de colchões improvisados como assentos, entramos eu, um soldado, um guarda municipal e mais dois policiais civis. Mesmo sabendo que uma chuvarada se agasalhava no céu amarantino, decidimos partir. E fomos. Todos juntos, fomos – pra frente, Brasil, Brasil, nossa seleção.

A estrada que leva ao Inferno não deve ser muito diferente da estrada que percorremos. Ladeiras íngremes, trechos esburacados, cortinas de poeira, crateras. Em ambos os lados, soberbas fazendas e a vegetação devastada, queimada, com muito gado aparentado mastigar capim sintético e pouquíssimos animais silvestres à vista. Durante a maior parte da viagem, apenas alguns urubus nos acompanharam em vôos panorâmicos. Em trechos menos devastados, um ou outro carcará no topo de alguma árvore chamuscada. Na ausência de mais animais, chegamos a imaginar, ao cruzar um baixio alagado, sucuris se arrastando imperceptíveis como as nuvens longínquas, espessas, pretas, aqui e acolá vazadas pelo sol.

Não tardou para que a chuva chegasse. Algum bonachão ainda sugeriu, de dentro da cabina, que o veículo estacionasse num local coberto para que nós, da carroceria, fôssemos poupados do aguaceiro. Recusamos, ostentando a típica dissimulação dos ofendidos, e deixamos a água nos purificar, lavando nossos corpos barrentos. Depois da chuva, novamente apareceu o sol, mas não tão quente quanto antes. Ao atravessar um vale, visualizamos um arco-íris imenso, majestoso. Lembrei dos meus tempos de menino. “Aquele arco-íris deve estar chupando a chuva”, pensou o menino.

Nossa primeira parada no tortuoso caminho das Sete Pontes foi o assentamento Alvoradinha, o maior e mais organizado do percurso, com energia elétrica, telefonia fixa e associação de moradores. Lá o delegado colheu depoimentos acerca de uma tentativa de homicídio. A vitima, um guarda municipal, havia sido “retalhada” a golpes de facão, após badernar e exibir seu revolver nos bares do centro da localidade. Mais adiante, a imagem mais dolorida, o retrato nu e cru – aqui cabe bem o clichê – da total ausência do Estado – a ocupação denominada Ouro Preto e seus casebres de bambu, mães adolescentes solteiras, energia elétrica ausente. Depois de outro depoimento colhido, seguimos. Na saída, um menino emparelhou-se à caminhonete, e, empurrando um aro enferrujado de bicicleta com um bastão deslizando pela calha, tentou nos acompanhar, disputar uma corrida. Ficaram para trás ele, seu aro enferrujado e o Ouro Preto.

Ápós oito horas de viagem, enfim avistamos a primeira das sete pequeninas pontes que dão nome à localidade (que termina num bar localizado na sétima ponte, na divisa entre Amarante e Açailandia). Fomos lá para caçar os assassinos de outro guarda municipal, morto durante uma bebedeira, com um tiro de espingarda. Chegando no bar onde o crime aconteceu, encontramos um dos suspeitos nas proximidades. Três dias depois, ele havia retornado. Fiquei pensando sobre aquela máxima que diz que o criminoso sempre retorna ao local do crime. Se verdade, se mentira, ali estava o homem, no mesmo local. Morbidez? Curiosidade? Raskolnikov, dias após assassinar a velha usuraria, também retornou ao quarteirão onde partira o crânio da idosa com um machado. Talvez o motivo seja um “chama”, uma “força gravitacional” muito forte que faz com que o homicida retorne. Ou, como se diz no Sertão, uma moeda colocada pelos populares debaixo da língua do morto.

Negando a princípio, o suspeito acabou confessando participação no crime. Negação e fuga são comportamentos naturais em um criminoso. Na verdade, um direito dele. Se um homem se sente acuado, perseguido (independente de quem o persegue, o Estado ou outro infrator), é seu direito fugir, se esconder. Direito pessoal, animalesco, não reconhecido pelo Estado. Aliás, reprimido, pois é para isso que existem mandado de prisão e agentes policiais para cumpri-lo. Mas, neste caso, as probabilidades de fuga do homem eram nulas. Em pouco tempo ele estava cercado, depois algemado, depois embarcado na carroceria da caminhonete que o levaria para a carceragem.

Na volta, ao anoitecer, paramos novamente no assentamento Alvoradinha, para jantar e colher mais depoimentos. Já era madrugada quando demos por encerrada a missão e retornamos para Amarante. Devido a estatura do preso – alto e magro –, o espaço de cada um diminuiu consideravelmente na carroceria da L200. Além do trabalho inútil de buscar conforto entre bolsas, garrafas térmicas e pernas, ainda tínhamos de carregar as armas – pistolas, metralhadoras, revolveres, dezenas de facões apreendidos durante o percurso. Depois de uma hora de viagem, estávamos todos doloridos. Para passar o tempo, alguém pediu para o preso contar uma piada. Após boas risadas por conta da falta de graça da estória, pedimos pra ele cantar uma música. Ele cantou Eu também vou reclamar, do Raul, errando frases e trocando versos.

O resto da viagem foi puro cansaço e silêncio. Eu estava sentado na frente do preso, meio zumbi, sentindo o pescoço ser chicoteado pelos galhos da vegetação da beira da estrada. Na minha diagonal, o soldado dormia profundamente entre um e outro buraco. "Incima daquele ipê tem um nin de arara azu", disse o preso, rompendo o silêncio às duas da madrugada. Ninguém respondeu. Ninguém queria dizer nada. Levantei a cabeça e olhei o ipê. Acima dele, por trás dos galhos, a lua, enorme, derramava a sua luz prateada sobre a copa das árvores. Estávamos percorrendo um trecho bom da estrada. O motorista pisava fundo contra o ar frio que entrava nas nossas roupas. Hipnotizado pelo barulho dos pneus do carro deslizando freneticamente sobre a piçarra, lembrei o personagem do Bruno Ganz galopando um cavalo na beira de uma praia no final do filme Nosferatu, O vampiro da noite. E – numa corrida não menos frenética – sumindo no meio de tudo, sumindo no meio de nada.

4 comentários:

Anônimo disse...

Conto fantástico!
prof.Magno Urbano

Anônimo disse...

Não sabia que no Amarante também tinha o Paris/Dakar, rsrs. Beijão. Paula.

Iuri Petrus disse...

Belíssimo!!!

observateur disse...

muito bacana o conto!
Mas...só o soldado tirou uma soneca...essa aí é sacanagem com o seu parceiro da "missão"